quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Vaniclélia

U, hum. Agora ter que aguentar esse bebo belzebu. O que é que ele me dá? Bolacha na desmancha. Porradela na canela. Eu era mais feliz antes. Quando o avião estrangeiro chegava e a gente rodava no aeroporto. Na boca quente da praia. Pelo menos, um príncipe me encantava. Naquele feitiço de sonho. De ir conhecer outro Lugar, se encher de ouro. Comprar aliança. U, hum.
Casar tinha futuro. Mesmo sabendo de umas que quebravam a cara. O gringo era covarde, levava para ser escrava. Mas valia. Menos pior que essa vida de bosta arrependida. De coisa criada. Qual é a minha esperança com esse marido barrigudo, eu grávida? Que leite ele vai construir?
Se for menina, vou ensinar assim: no porto, no Carnaval. No calçadão de Boa Viagem. Com cuidado para a polícia não ver a sacanagem. E querer participar. Um dia, eu tive que foder com a tropa inteira da delegacia. Mexeram comigo até o dia amanhecer. E ainda ficaram tirando onda: que eu devia respeitar o homem brasileiro. Rarará. Mataram a Vaniclélia, lembra, não lembra, lembra? De tanto que afolozaram ela.
Homem? U-hum. Não vale um tostão pelas bandas daqui. Os caras pelo menos tinham educação, outra finura: levavam a gente para restaurante, deitavam a gente em cama d'água. Sabonete de colônia. A gente era respeitada. Precisava ver como o garçom e o pivete e o gerente e o taxista da frente e o povo todo nos tratava. O que cada um ganhava de gorjeta não era brincadeira. Acabava saindo rendendo pra todo mundo. Uma beleza!
Agora que valor me dá esse belzebu? Quanto vale ele ali, na praça? Pergunta, pergunta. A vida dele é me chamar de piranha e de vagabunda. E tirar sangue de mim. Cadê meus dentes? Nem vê que eu tô esperando uma criança. Agora, disso ninguém tem ciência. Ninguém dá um fim.
Mulher como eu ser tratada assim.
Marcelino Freire, in Contos Negreiros

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