Estavam
sentados no topo da carroceria, os corpos rígidos e cheios de
cãibras, as crianças, Connie, Rosa de Sharon e o pregador. Tinham
esperado diante da casa do médico-legista de Bakersfield enquanto o
pai, a mãe e tio John estiveram lá dentro. Depois um cesto foi
trazido para fora, e baixaram da carroceria o volume alongado.
Esperaram ao sol enquanto o cadáver era examinado, enquanto era
constatada a causa da morte e escrita a certidão de óbito.
Al
e Tom vadiavam pela rua, olhando as vitrines e as pessoas estranhas
nas calçadas.
Finalmente
o pai, a mãe e tio John saíram novamente. Estavam deprimidos,
silenciosos. Tio John trepou na carroceria, o pai e a mãe subiram à
cabine. Tom e Al regressaram devagar, e Tom sentou-se ao volante.
Ficou ali, calado, esperando uma ordem. O pai fixou o olhar para a
frente, com o chapéu escuro puxado sobre os olhos. A mãe esfregou
as comissuras dos lábios com os dedos. Seu olhar estava perdido ao
longe, esquecido e morto de cansaço.
O
pai deu um suspiro profundo.
— Não
tinha outro jeito — disse.
— Sei
bem — disse a mãe. — Mas ela sempre desejou um enterro bonito.
Sempre.
Tom
olhou-a de revés.
— Vala
comum? — perguntou ele.
— É.
— O pai sacudiu a cabeça, como se fizesse força para voltar à
realidade. — Não tivemos o bastante. Não era possível. —
Dirigiu-se à mãe.
— Cê
não deve levar isso tão a sério. Não podia ser, por mais que a
gente quisesse. Faltou o dinheiro. Embalsamamento, caixão, pregador
e o túmulo no cemitério teriam custado dez vezes mais do que o que
temos. A gente fez o que pôde.
— Eu
sei — disse a mãe. — Só que não me quer sair da cabeça o
quanto ela desejou um enterro bonito. Mas, não há remédio —
suspirou profundamente, esfregando os lábios. — Aquele homem lá
dentro era bem simpático: um rapaz mandão, mas simpático.
— É
— disse o pai. — Ele nos passou um sabão, direitinho.
A
mãe alisou o cabelo para trás. Os músculos das suas faces tornaram
a se contrair.
— Temos
que continuar — disse. — A gente tem que achar um lugar onde
parar, tem que achar trabalho, e tem que se instalar. Não se deve
deixar as crianças passar fome. Também a avó não ia gostar disso.
Na casa dela sempre tinha boa ceia de velório.
— Aonde
vamos? — perguntou Tom.
O
pai tirou o chapéu, coçando a cabeça.
— Pra
um acampamento — disse. — A pouca coisa que a gente tem ainda,
não pode gastar. Primeiro, a gente tem que achar trabalho. Toca
adiante, vamo embora da cidade!
Tom
pôs o motor em movimento e atravessaram as ruas em direção ao
campo. Perto de uma ponte viram uma aglomeração de tendas e
barracas. Tom disse:
— Podemos
parar aqui. De qualquer jeito, a gente tem que ver primeiro o que há
por aqui, onde tem trabalho.
Desceu
por um atalho curto e íngreme, parando ao lado do acampamento.
Não
havia ordem nesse acampamento. Estavam misturadas de qualquer maneira
as pequenas tendas cinzentas, barracas e carros. A primeira casa era
simplesmente indescritível. A parede do lado sul consistia em três
chapas de folha de flandres onduladas e enferrujadas, a do leste era
um velho tapete bolorento, estendido entre duas estacas; a do norte
uma tira de papelão e outra de lona esfarrapada; e a parede do oeste
era feita de seis pedaços de aniagem costurados. O telhado era feito
de ramos de salgueiro, sobre os quais havia hastes verdes, não
igualmente distribuídas, acumuladas em forma de pirâmide. Diante da
entrada, ao lado da parede de aniagem, havia uma confusão de
objetos. Uma grande lata de querosene servia de fogão. Pendia para
um lado, havendo incrustado nela um pedaço de chaminé de fogão
enferrujado. Uma cuba estava em pé, virada para a parede; boa
quantidade de caixotes havia dispersa ao redor, caixotes que serviam
de mesa e de cadeira. Um sedã Ford, modelo T, e um trailer de duas
rodas estacionavam ao lado da barraca. Sobre tudo isso pairava uma
atmosfera de desordem e desespero.
Próximo
à barraca havia uma pequena tenda de lona desbotada, mas armada
ordenadamente. Os caixotes, diante dela, estavam apertados contra a
parede. Um tubo de fogão dirigia-se para o alto através da entrada
da tenda, e o chão diante dela estava varrido e regado. Num dos
caixotes havia um balde cheio de roupa molhada. Ali, o acampamento
dava uma impressão de asseio. Ao lado da tenda via-se um Roadster
modelo A, e um pequeno trailer construído em casa.
Seguia-se
uma tenda enorme, esfarrapada e com os buracos remendados a arame. A
entrada estava aberta, e dentro, no chão, havia quatro colchões de
casal. Fora, havia ainda, estirada, um varal, em que estavam
suspensos vestidos de algodão cor-de-rosa e vários macacões. Havia
ali ao todo quarenta tendas e barracas, e ao lado de cada habitação
estacionava sempre alguma espécie de automóvel. Mais para trás,
agrupavam-se algumas crianças, olhando o carro que acabava de
chegar. Algumas corriam ao seu encontro. Eram meninos, vestidos de
macacões, descalços e com os cabelos cinzentos de poeira.
Tom
parou o carro, olhando o pai.
— Não
é muito bonito, isso. O senhor quer ir pra outro lugar?
— Não
podemos ir pra nenhum outro lugar antes que a gente saiba como vão
as coisas. Tem que se perguntar pelo trabalho — disse o pai.
Tom
abriu a porta e saiu. A família desceu da carroceria, olhando
curiosamente ao redor de si. Ruthie e Winfield, de acordo com o
hábito adquirido na estrada, tomaram o balde e correram em direção
aos salgueiros, onde, provavelmente, haveria água. E a fileira
formada pelas crianças abriu-se para deixá-los passar, fechando-se
novamente em seguida.
A
entrada da primeira barraca abriu-se, dando passagem a uma mulher.
Seus cabelos, encanecidos, estavam entrançados. Usava uma bata suja,
floreada. Seu rosto era rugoso e de aparência estúpida. Sob os
olhos inexpressivos, salientavam-se fundos papos cinzentos, e sua
boca era lassa.
O
pai perguntou:
— Será
que a gente pode se instalar aqui?
A
cabeça tornou a desaparecer na tenda. Por um instante, reinou
silêncio, depois entreabriu-se novamente o pano de aniagem e saiu da
tenda um homem barbudo, em mangas de camisa. A mulher, atrás dele,
deixou a cabeça para fora, por entre os sacos, mas não saiu da
barraca.
O
barbudo disse:
— Bom
dia, pessoal — e seus olhos sombrios e agitados pousavam de um
membro da família para outro, estacionando depois no caminhão e sua
carga.
O
pai disse:
— Acabo
de perguntar à sua senhora se a gente pode se instalar aqui.
O
barbudo olhou o pai com seriedade, como se este tivesse dito alguma
coisa muito profunda e que exigia certa meditação.
— Instalar-se
aqui, no acampamento? — perguntou.
— É.
O acampamento pertence a alguém a quem a gente deve pedir licença?
O
barbudo piscou o olho esquerdo, examinando o pai.
— Então
querem acampar aqui?
Cresceu
a irritação do pai. A mulher de cabeça encanecida espreitou de
novo entre a aniagem.
— Ora,
o que é que eu tô perguntando, afinal? — disse o pai.
— Bem,
se querem acampar aqui, por que não acampam? Eu não tenho nada com
isso.
Tom
riu:
— Compreendeu,
afinal.
O
pai resignou-se.
— Só
quis saber se o acampamento era de alguém. Será que a gente tem que
pagar?
O
barbudo projetou o queixo para diante.
— Se
pertence a alguém? — perguntou.
O
pai virou-lhe as costas.
— Ora,
vá pro diabo que o carregue!
A
mulher encolheu de novo a cabeça.
O
barbudo avançou, ameaçador.
— Se
pertence a alguém? — perguntou. — Quem vai nos enxotar daqui?
Diga!
Tom
colocou-se entre ele e o pai.
— É
melhor você ir dormir um pouco — disse.
O
barbudo abriu a boca, passando o dedo sujo pelas gengivas do maxilar
inferior. Olhou Tom pensativamente, depois girou nos calcanhares e
entrou rapidamente na barraca, atrás da mulher de cabeça
encanecida.
Tom
dirigiu-se ao pai.
— Que
diabo foi isso? — perguntou.
O
pai encolheu os ombros. Deixou seu olhar vaguear pelo acampamento. À
frente de uma das tendas estacionava um velho Buick, com o capô
desmontado. Um rapaz esmerilhava as válvulas, e enquanto passava a
fita de polir para trás e para a frente, lançou um olhar ao
caminhão dos Joad. Podia-se ver que ele ria em silêncio.
Quando
o barbudo foi embora, o rapaz, deixando o trabalho, aproximou-se
lentamente.
— Bom
dia — disse, e seus olhos azuis brilhavam, divertidos. — Vi como
vocês falavam com o “Prefeito”.
— Quem
diabo é esse sujeito? — perguntou Tom.
O
rapaz deu uma gargalhada.
— É
um maluco, como você e como eu. Talvez um pouco mais do que eu, não
sei.
— Só
perguntei a ele se podíamos acampar aqui — disse o pai.
O
rapaz limpou as mãos cheias de óleo nas calças.
— É
natural. Vocês acabam de chegar, né?
— É
— disse Tom —, chegamos hoje de manhã.
— Então
nunca antes tiveram em Hooverville?
— Onde
é Hooverville?
— É
aqui.
— É?
— disse Tom. — Não sabia. A gente acabou de chegar...
Winfield
e Ruthie voltaram, trazendo o balde cheio d’água.
— Vamos
armar a tenda. Tô exausta. Pode ser que a gente fique algum tempo
aqui — disse a mãe.
O
pai e tio John subiram na carroceria para descarregar a lona e as
camas.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
Nenhum comentário:
Postar um comentário