quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Onde é Hooverville?

Estavam sentados no topo da carroceria, os corpos rígidos e cheios de cãibras, as crianças, Connie, Rosa de Sharon e o pregador. Tinham esperado diante da casa do médico-legista de Bakersfield enquanto o pai, a mãe e tio John estiveram lá dentro. Depois um cesto foi trazido para fora, e baixaram da carroceria o volume alongado. Esperaram ao sol enquanto o cadáver era examinado, enquanto era constatada a causa da morte e escrita a certidão de óbito.
Al e Tom vadiavam pela rua, olhando as vitrines e as pessoas estranhas nas calçadas.
Finalmente o pai, a mãe e tio John saíram novamente. Estavam deprimidos, silenciosos. Tio John trepou na carroceria, o pai e a mãe subiram à cabine. Tom e Al regressaram devagar, e Tom sentou-se ao volante. Ficou ali, calado, esperando uma ordem. O pai fixou o olhar para a frente, com o chapéu escuro puxado sobre os olhos. A mãe esfregou as comissuras dos lábios com os dedos. Seu olhar estava perdido ao longe, esquecido e morto de cansaço.
O pai deu um suspiro profundo.
Não tinha outro jeito — disse.
Sei bem — disse a mãe. — Mas ela sempre desejou um enterro bonito. Sempre.
Tom olhou-a de revés.
Vala comum? — perguntou ele.
É. — O pai sacudiu a cabeça, como se fizesse força para voltar à realidade. — Não tivemos o bastante. Não era possível. — Dirigiu-se à mãe.
Cê não deve levar isso tão a sério. Não podia ser, por mais que a gente quisesse. Faltou o dinheiro. Embalsamamento, caixão, pregador e o túmulo no cemitério teriam custado dez vezes mais do que o que temos. A gente fez o que pôde.
Eu sei — disse a mãe. — Só que não me quer sair da cabeça o quanto ela desejou um enterro bonito. Mas, não há remédio — suspirou profundamente, esfregando os lábios. — Aquele homem lá dentro era bem simpático: um rapaz mandão, mas simpático.
É — disse o pai. — Ele nos passou um sabão, direitinho.
A mãe alisou o cabelo para trás. Os músculos das suas faces tornaram a se contrair.
Temos que continuar — disse. — A gente tem que achar um lugar onde parar, tem que achar trabalho, e tem que se instalar. Não se deve deixar as crianças passar fome. Também a avó não ia gostar disso. Na casa dela sempre tinha boa ceia de velório.
Aonde vamos? — perguntou Tom.
O pai tirou o chapéu, coçando a cabeça.
Pra um acampamento — disse. — A pouca coisa que a gente tem ainda, não pode gastar. Primeiro, a gente tem que achar trabalho. Toca adiante, vamo embora da cidade!
Tom pôs o motor em movimento e atravessaram as ruas em direção ao campo. Perto de uma ponte viram uma aglomeração de tendas e barracas. Tom disse:
Podemos parar aqui. De qualquer jeito, a gente tem que ver primeiro o que há por aqui, onde tem trabalho.
Desceu por um atalho curto e íngreme, parando ao lado do acampamento.
Não havia ordem nesse acampamento. Estavam misturadas de qualquer maneira as pequenas tendas cinzentas, barracas e carros. A primeira casa era simplesmente indescritível. A parede do lado sul consistia em três chapas de folha de flandres onduladas e enferrujadas, a do leste era um velho tapete bolorento, estendido entre duas estacas; a do norte uma tira de papelão e outra de lona esfarrapada; e a parede do oeste era feita de seis pedaços de aniagem costurados. O telhado era feito de ramos de salgueiro, sobre os quais havia hastes verdes, não igualmente distribuídas, acumuladas em forma de pirâmide. Diante da entrada, ao lado da parede de aniagem, havia uma confusão de objetos. Uma grande lata de querosene servia de fogão. Pendia para um lado, havendo incrustado nela um pedaço de chaminé de fogão enferrujado. Uma cuba estava em pé, virada para a parede; boa quantidade de caixotes havia dispersa ao redor, caixotes que serviam de mesa e de cadeira. Um sedã Ford, modelo T, e um trailer de duas rodas estacionavam ao lado da barraca. Sobre tudo isso pairava uma atmosfera de desordem e desespero.
Próximo à barraca havia uma pequena tenda de lona desbotada, mas armada ordenadamente. Os caixotes, diante dela, estavam apertados contra a parede. Um tubo de fogão dirigia-se para o alto através da entrada da tenda, e o chão diante dela estava varrido e regado. Num dos caixotes havia um balde cheio de roupa molhada. Ali, o acampamento dava uma impressão de asseio. Ao lado da tenda via-se um Roadster modelo A, e um pequeno trailer construído em casa.
Seguia-se uma tenda enorme, esfarrapada e com os buracos remendados a arame. A entrada estava aberta, e dentro, no chão, havia quatro colchões de casal. Fora, havia ainda, estirada, um varal, em que estavam suspensos vestidos de algodão cor-de-rosa e vários macacões. Havia ali ao todo quarenta tendas e barracas, e ao lado de cada habitação estacionava sempre alguma espécie de automóvel. Mais para trás, agrupavam-se algumas crianças, olhando o carro que acabava de chegar. Algumas corriam ao seu encontro. Eram meninos, vestidos de macacões, descalços e com os cabelos cinzentos de poeira.
Tom parou o carro, olhando o pai.
Não é muito bonito, isso. O senhor quer ir pra outro lugar?
Não podemos ir pra nenhum outro lugar antes que a gente saiba como vão as coisas. Tem que se perguntar pelo trabalho — disse o pai.
Tom abriu a porta e saiu. A família desceu da carroceria, olhando curiosamente ao redor de si. Ruthie e Winfield, de acordo com o hábito adquirido na estrada, tomaram o balde e correram em direção aos salgueiros, onde, provavelmente, haveria água. E a fileira formada pelas crianças abriu-se para deixá-los passar, fechando-se novamente em seguida.
A entrada da primeira barraca abriu-se, dando passagem a uma mulher. Seus cabelos, encanecidos, estavam entrançados. Usava uma bata suja, floreada. Seu rosto era rugoso e de aparência estúpida. Sob os olhos inexpressivos, salientavam-se fundos papos cinzentos, e sua boca era lassa.
O pai perguntou:
Será que a gente pode se instalar aqui?
A cabeça tornou a desaparecer na tenda. Por um instante, reinou silêncio, depois entreabriu-se novamente o pano de aniagem e saiu da tenda um homem barbudo, em mangas de camisa. A mulher, atrás dele, deixou a cabeça para fora, por entre os sacos, mas não saiu da barraca.
O barbudo disse:
Bom dia, pessoal — e seus olhos sombrios e agitados pousavam de um membro da família para outro, estacionando depois no caminhão e sua carga.
O pai disse:
Acabo de perguntar à sua senhora se a gente pode se instalar aqui.
O barbudo olhou o pai com seriedade, como se este tivesse dito alguma coisa muito profunda e que exigia certa meditação.
Instalar-se aqui, no acampamento? — perguntou.
É. O acampamento pertence a alguém a quem a gente deve pedir licença?
O barbudo piscou o olho esquerdo, examinando o pai.
Então querem acampar aqui?
Cresceu a irritação do pai. A mulher de cabeça encanecida espreitou de novo entre a aniagem.
Ora, o que é que eu tô perguntando, afinal? — disse o pai.
Bem, se querem acampar aqui, por que não acampam? Eu não tenho nada com isso.
Tom riu:
Compreendeu, afinal.
O pai resignou-se.
Só quis saber se o acampamento era de alguém. Será que a gente tem que pagar?
O barbudo projetou o queixo para diante.
Se pertence a alguém? — perguntou.
O pai virou-lhe as costas.
Ora, vá pro diabo que o carregue!
A mulher encolheu de novo a cabeça.
O barbudo avançou, ameaçador.
Se pertence a alguém? — perguntou. — Quem vai nos enxotar daqui? Diga!
Tom colocou-se entre ele e o pai.
É melhor você ir dormir um pouco — disse.
O barbudo abriu a boca, passando o dedo sujo pelas gengivas do maxilar inferior. Olhou Tom pensativamente, depois girou nos calcanhares e entrou rapidamente na barraca, atrás da mulher de cabeça encanecida.
Tom dirigiu-se ao pai.
Que diabo foi isso? — perguntou.
O pai encolheu os ombros. Deixou seu olhar vaguear pelo acampamento. À frente de uma das tendas estacionava um velho Buick, com o capô desmontado. Um rapaz esmerilhava as válvulas, e enquanto passava a fita de polir para trás e para a frente, lançou um olhar ao caminhão dos Joad. Podia-se ver que ele ria em silêncio.
Quando o barbudo foi embora, o rapaz, deixando o trabalho, aproximou-se lentamente.
Bom dia — disse, e seus olhos azuis brilhavam, divertidos. — Vi como vocês falavam com o “Prefeito”.
Quem diabo é esse sujeito? — perguntou Tom.
O rapaz deu uma gargalhada.
É um maluco, como você e como eu. Talvez um pouco mais do que eu, não sei.
Só perguntei a ele se podíamos acampar aqui — disse o pai.
O rapaz limpou as mãos cheias de óleo nas calças.
É natural. Vocês acabam de chegar, né?
É — disse Tom —, chegamos hoje de manhã.
Então nunca antes tiveram em Hooverville?
Onde é Hooverville?
É aqui.
É? — disse Tom. — Não sabia. A gente acabou de chegar...
Winfield e Ruthie voltaram, trazendo o balde cheio d’água.
Vamos armar a tenda. Tô exausta. Pode ser que a gente fique algum tempo aqui — disse a mãe.
O pai e tio John subiram na carroceria para descarregar a lona e as camas.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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