segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Terra da mentira

         Robi contou sua primeira mentira quando estava com sete anos. A mãe lhe entregou uma cédula velha e amarrotada e pediu que fosse comprar um maço de Kent longo no armazém. Com o dinheiro, Robi comprou um sorvete. As moedas que recebeu como troco, ele as escondeu sob uma grande pedra branca no pátio dos fundos do prédio em que viviam e, quando voltou para casa, contou para a mãe que um garoto ruivo amedrontador, sem um dente da frente, o havia parado na rua, lhe dera um tapa e tomara a cédula. Ela acreditou. E, desde então, Robi não parou de mentir. Quando estava no ensino médio, viajou para Eilat e ficou à toa lá na praia por quase uma semana, depois de ter contado ao coordenador da classe uma história sobre uma tia de Beer Sheva que estava com câncer. No exército, esta tia imaginária já ficou cega e ajudou Robi a sair de uma confusão por causa de faltas, sem prisão e até sem confinamento na caserna. Nada. No trabalho, certa vez ele justificou um atraso de duas horas com uma mentira a respeito de um pastor-alemão que encontrara atropelado junto à calçada e que ele levara ao veterinário. Na mentira, o cachorro ficara paralítico e nunca mais recuperaria o movimento das patas traseiras. Funcionou. Robi Algarbali teve oportunidade de mentir muitas vezes durante a vida. Mentiras sem braços e doentes, mudas e más, mentiras com pernas e sobre rodas, mentiras de casaca e com bigode. Mentiras inventadas em um segundo, com as quais ele não pensava que algum dia teria que voltar a se encontrar.

Tudo começou com um sonho. Um sonho breve e pouco nítido com a falecida mãe. No sonho, ambos estavam sentados em um tapete no meio de um espaço branco desprovido de detalhes, que parecia não ter começo nem fim. Perto deles, no espaço branco infinito, havia uma máquina de chicletes com a parte superior transparente, do tipo antigo em que se enfia a moeda por uma fenda, gira-se a manivela e se recebe um chiclete de bola. No sonho, a mãe de Robi lhe dizia que o mundo vindouro estava começando a enlouquecê-la, porque as pessoas eram boas, mas não havia cigarro. Não só não havia cigarros, como não havia café, nem rádio. Nada.

Você precisa me ajudar, Robi – ela disse. – Precisa me comprar um chiclete. Eu criei você, filho. Todos esses anos lhe dei tudo e não pedi nada. Mas agora chegou a hora de retribuir a sua velha mãe. Compre um chiclete de bola para mim. Vermelho, se for possível. Mas não tem problema se sair um azul. – E, no sonho, Robi remexeu os bolsos repetidamente, procurou uma moeda e não achou. – Não tenho, mãe – disse em lágrimas.

Não tenho moedas, procurei em todos os bolsos.

Como ele nunca chorava quando estava acordado, era estranho que chorasse no sonho.

Você procurou também debaixo da pedra? – a mãe perguntou, e envolveu a palma da mão dele em sua própria mão. – Será que elas ainda estão ali?

E então ele acordou. Era um sábado, cinco da manhã, ainda estava escuro. Robi se viu entrando no carro e dirigindo para o lugar onde vivera na infância. Sem movimento nas ruas, demorou menos de vinte minutos para chegar. No térreo do prédio, onde antigamente ficava o armazém de Pliskin, havia sido aberta uma loja de artigos a 1,99 e, ao lado, no lugar da sapataria, havia agora uma filial de uma empresa de celulares que oferecia upgrades de aparelhos como se não houvesse o amanhã.

Mas o prédio continuava igual. Haviam se passado mais de vinte anos desde a mudança deles, e não fora sequer pintado. O pátio também era o mesmo, com algumas flores, uma torneira, um registro de água enferrujado, muito mato. E, no canto, junto à instalação do varal que anualmente transformavam em sucá, jazia a pedra branca.

Ele estava ali, no pátio dos fundos do prédio onde tinha crescido, de parca, com uma grande lanterna de plástico na mão, sentindo-se estranho. Cinco e meia da manhã de um sábado. Se, suponhamos, aparecesse um vizinho, o que lhe diria? Minha falecida mãe apareceu para mim no sonho e pediu que eu lhe comprasse um chiclete, então vim aqui para procurar moedas?

Era estranho que a pedra ainda estivesse lá, depois de tantos anos. Por outro lado, não é como se pedras pudessem levantar-se e mudar de lugar. Ergueu a pedra cautelosamente, como se um escorpião pudesse estar escondido debaixo dela. Mas não havia nenhum escorpião ou cobra ou moedas, apenas um buraco com o diâmetro de uma laranja, do qual brotava uma luz.

Robi tentou espiar dentro dele, mas a luz o ofuscou. Hesitou por um segundo e, em seguida, meteu a mão lá. Estendeu o braço todo até o ombro, deitado no chão, tentando tocar alguma coisa no fundo do buraco. Mas o buraco não tinha fundo, e a única coisa que conseguiu tocar pareceu de metal frio. Como uma manivela. A manivela de uma máquina de chicletes. Robi girou-a com toda a força e sentiu o mecanismo reagir ao toque. Agora tinha chegado o momento em que o chiclete deveria rolar para fora; percorrer todo o caminho a partir das entranhas metálicas da máquina para a palma da mão de um menino emocionado que o aguardava com impaciência. Esse era exatamente o momento em que tudo isso deveria acontecer. Mas não aconteceu. E no instante em que Robi acabou de girar a manivela, ele apareceu aqui.

Aqui” era um lugar diferente, mas também conhecido. Era o lugar do sonho com a mãe. Totalmente branco, sem paredes, sem chão, sem teto, sem luz do sol. Apenas brancura e uma máquina de chicletes. Uma máquina de chicletes e um menino ruivo baixo e feio, que, de alguma forma, Robi não tinha notado no primeiro olhar. E, antes que Robi conseguisse sorrir para o menino ou dizer alguma coisa, o ruivo já tinha chutado sua perna com toda a força e o feito cair de joelhos. Agora, de joelhos, gemendo de dor, ele e o garoto estavam exatamente da mesma altura. O ruivo olhou dentro dos olhos de Robi e, apesar de Robi saber que jamais tinham se encontrado, havia algo de familiar nele. “Quem é você?”, perguntou para o menino ruivo, que arfava diante dele. “Eu?”, o ruivo sorriu com um sorriso malvado que expôs a falta de um dente da frente, “Sou a sua primeira mentira.”

Robi tentou se levantar. A perna que levara o pontapé doía como o diabo. O menino já tinha fugido. Robi examinou a máquina de chicletes de perto. Por entre os chicletes ocultavam-se bolas de plástico semitransparentes com brindes em seu interior. Ele vasculhou seus bolsos em busca de alguma moeda, mas depois lembrou que o ruivo tinha roubado sua carteira antes de fugir.

Robi começou a mancar em uma direção qualquer. Como no espaço branco não havia nenhum marco, exceto a máquina de chicletes, a única coisa que podia fazer era tentar afastar-se dela. A cada poucos passos, girava a cabeça para verificar se a máquina estava realmente se tornando menor.

A certa altura, ao voltar-se, viu um cão pastor ao lado de um velho magro, com um olho de vidro e os braços amputados. O cão, ele reconheceu de imediato pela forma como avançava, meio se arrastando, as duas patas dianteiras puxando com grande esforço a pelve paralisada. Era o cão atropelado da mentira, ofegante com o esforço e a emoção, feliz de encontrá-lo. Lambeu a mão de Robi e cravou-lhe um par de olhos brilhantes. Robi não conseguiu identificar o homem magro.

Eu sou Robi – disse e assentiu com a cabeça.

Igor – o velho se apresentou, e, com um dos ganchos adaptados ao coto dos braços, deu um tapinha nas costas de Robi.

Nós nos conhecemos? – Robi perguntou, após alguns segundos de um silêncio hesitante.

Não – Igor respondeu, levantando a coleira do cão com a ajuda de um dos ganchos. – Eu só estou aqui por causa dele. Farejou você a quilômetros de distância e ficou muito emocionado. Ele quis que viéssemos.

Então, não há nenhuma conexão entre nós – disse Robi, com uma sensação de alívio.

Eu e você? Não, nenhuma conexão. Eu sou a mentira de outra pessoa.

Robi quis muito perguntar a Igor de quem ele era a mentira, mas não estava seguro de que fosse uma pergunta polida a ser formulada naquele lugar. Aliás, ele teria gostado de perguntar o que era exatamente aquele lugar e se havia ali, além dele, muitas outras pessoas, ou mentiras, ou como quer que se denominassem, mas receou que esta fosse uma questão delicada. Então, em vez de falar, acariciou o cão aleijado de Igor. Era um belo animal e parecia muito feliz em encontrar Robi, que se apiedou dele e sentiu-se culpado por não ter inventado uma mentira um pouco menos dolorida e sofrida.

A máquina de chicletes – perguntou para Igor após alguns minutos –, com que tipo de moeda ela funciona?

Liras – disse o velho.

Antes esteve aqui um menino – disse Robi –, que pegou a minha carteira. Mas mesmo se a tivesse deixado, não havia liras nela.

Um menino sem um dente? – Igor perguntou. – Esse pequeno miserável rouba de todos. Come até a ração do cachorro. De onde venho, lá na Rússia, pegariam um menino como esse e o deixariam na neve, apenas de cueca e meias, e só permitiriam que entrasse de novo em casa quando todo o seu corpo estivesse azulado. – Com um de seus ganchos, Igor apontou para o seu bolso traseiro. – Aqui dentro tenho algumas liras. Pegue. É presente meu.

Hesitante, Robi pegou uma moeda de uma lira do bolso de Igor e, depois de agradecer, tentou lhe oferecer em troca o seu relógio Swatch.

Obrigado – Igor sorriu –, mas para que eu preciso de um relógio de plástico? Além disso, jamais tenho pressa de chegar a algum lugar. – E quando viu que Robi procurava alguma outra coisa para lhe dar, apressou-se em tranquilizá-lo. – De todo modo, sou-lhe devedor. Não fosse pela sua mentira sobre o cão, eu estaria aqui sozinho. Portanto, agora estamos quites.

Robi mancou de volta com rapidez na direção da máquina de chicletes. O chute do menino ruivo ainda doía, mas um pouco menos agora. Ele meteu a lira na máquina, respirou fundo, fechou os olhos e girou rapidamente a manivela.

Encontrou-se estirado no chão do pátio de seu prédio antigo. A luz do amanhecer já começara a colorir o céu com tons escuros de azul. Robi puxou o braço para fora do buraco fundo e, quando abriu o punho, descobriu que dentro dele havia um chiclete de bola vermelho.

Antes de ir embora, Robi recolocou a pedra no lugar. Não se perguntou o que exatamente tinha acontecido no buraco. Simplesmente entrou no carro, deu uma ré e partiu. Colocou o chiclete vermelho debaixo do travesseiro, para a mãe, caso ela voltasse no sonho.

Nos primeiros dias, Robi ainda pensou muito sobre aquilo, sobre aquele lugar, sobre o cão, sobre Igor, sobre outras mentiras que contara e que, por sorte, não encontrou. Houve aquela mentira bizarra que contou certa vez para Ruth, sua ex-namorada, quando não foi ao jantar de sexta-feira na casa dos pais dela – uma mentira sobre a sobrinha dele que morava em Natânia, casada com um homem violento, e como o cara ameaçara matá-la e Robi precisou ir até lá para acalmar os ânimos. Até hoje, ele não sabia por que inventara esta história tão enrolada. Talvez tivesse pensado que quanto mais inventasse algo complicado e desvirtuado, tanto mais ela acreditaria nele. Há pessoas que, quando não comparecem ao jantar de sexta-feira, simplesmente dizem que estão com dor de cabeça ou algo parecido. Ele, não. Por causa dele e dessas suas histórias, um marido lunático e sua esposa espancada estavam lá fora, não longe dali, num buraco na terra.

Ele não voltou ao buraco, mas algo daquele lugar permaneceu com ele. No início, continuou a mentir, mas eram mentiras do tipo positivas, em que ninguém bate, manca ou agoniza de câncer. Chegou atrasado no trabalho porque teve que regar as plantas no apartamento da tia que tinha viajado para visitar o filho bem-sucedido no Japão; não compareceu a um chá de bebê porque uma gata pariu junto à sua porta e ele teve que cuidar da ninhada. Coisas assim.

Mas era muito mais complicado inventar mentiras positivas. Pelo menos aquelas que você quisesse tornar plausíveis. Em geral, quando se conta para as pessoas algo de ruim, elas imediatamente acreditam, porque soa normal. Mas quando se inventam coisas boas, elas tendem a desconfiar. E, assim, lentamente, Robi viu-se mentindo menos. Por preguiça, principalmente. E, com o tempo, também pensou cada vez menos sobre aquele lugar. Sobre o buraco. Até a manhã em que ouviu Natasha, da Contabilidade, falar com o chefe do setor. Ela pedia uma licença urgente de alguns dias porque o seu tio Igor tinha tido um ataque cardíaco. Um pobre homem, um viúvo sem sorte, que já perdera os dois braços em um acidente de trânsito na Rússia. E agora isso, o coração. Ele era tão só e desamparado.

O chefe do setor autorizou a licença de imediato, sem questionar. Natasha foi ao seu escritório, pegou a bolsa e saiu do prédio. Robi a seguiu até o carro dela. Quando ela parou para pegar as chaves na bolsa, ele também parou. Ela voltou-se para ele.

Você trabalha em Compras, não é? – perguntou-lhe. – É o assistente de Zaguri, certo?

Sim – anuiu Robi. – Eu me chamo Robi.

Beleza, Robi – disse Natasha, com um nervoso sorriso russo. – Então, o que aconteceu? Está precisando de alguma coisa?

É sobre essa mentira que você contou há pouco para o chefe do setor – Robi gaguejou. – Eu o conheço.

Você me seguiu até o meu carro só para me acusar de ser mentirosa?

Não – retrucou Robi. – Não estou acusando. De verdade. O fato de você ser mentirosa, tudo bem. Também sou mentiroso. Mas esse Igor da sua mentira, eu o conheci. Ele é um cara bacana. E você, desculpe por dizer isto, você inventou coisas bem graves para ele. Então, eu só queria lhe dizer que...

Dá para você sair da minha frente? – Natasha o interrompeu friamente. – Você está bloqueando a porta do meu carro.

Eu sei que isso soa absurdo, mas eu posso provar – Robi estava tenso. – Igor não tem olho. Quer dizer, ele tem, mas apenas um. Em algum momento você deve ter mentido e dito que ele tinha perdido um olho, certo?

Natasha, que já estava entrando no carro, parou.

De onde você tirou isso? – ela disse desconfiada. – Você é amigo de Slava?

Não conheço nenhum Slava – Robi balbuciou. – Só Igor. Sério. Se quiser, posso levá-la até ele.

Estavam no pátio dos fundos do antigo prédio. Robi moveu a pedra, deitou-se no solo úmido e meteu o braço no buraco. Natasha estava de pé acima dele. Ele estendeu o outro braço para ela e disse: “Segure firme.”

Natasha olhou para o homem estendido a seus pés. Trinta e poucos anos, boa aparência, camisa branca limpa e passada, que agora já estava um pouco menos limpa e muito menos passada. Um dos braços dele estava enfiado em um buraco, e o rosto, grudado no chão.

Segure firme – ele repetiu, e ela não pôde deixar de se perguntar, ao estender a mão para ele, como é que sempre acabava encontrando todos estes pirados. Quando ele começou com todas aquelas besteiras perto do carro, ela pensou que talvez fosse um tipo de piada, alguma “pegadinha”, mas agora percebia que esse rapaz de olhos suaves e sorriso tímido realmente era um maluco. Os dedos dele apertavam os dela com força. Ficaram assim, congelados, por um instante, ele estirado no chão, e ela, acima, ligeiramente encurvada, com um olhar desnorteado. – OK – Natasha sussurrou em uma voz suave, quase terapêutica.

Então, estamos de mãos dadas. E agora?

Agora – Robi disse –, eu vou girar a manivela.

Eles levaram muito tempo para achar Igor. Primeiro, encontraram uma mentira peluda e corcunda, de um argentino que não falava uma palavra em hebraico. Depois, outra mentira de Natasha, um policial religioso chato que insistiu em retê-los e verificar os seus documentos, mas nunca havia sequer ouvido falar de Igor. Quem, no final, os ajudou, foi a sobrinha agredida de Robi, de Natânia. Eles a encontraram alimentando a ninhada da gata, da última mentira dele. Ela não via Igor havia alguns dias, mas sabia onde encontrar o seu cão. Quanto ao cão, depois que terminou de lamber as mãos e o rosto de Robi, alegrou-se em conduzi-los ao leito de seu amo.

Igor encontrava-se em péssimo estado. Sua pele estava totalmente amarelada e ele suava sem cessar. Quando viu Natasha, no entanto, esboçou um sorriso gigantesco. Alegrou-se muito por ela ter vindo visitá-lo e insistiu em levantar-se e abraçá-la, embora mal conseguisse ficar de pé. Àquela altura, Natasha começou a chorar e pediu-lhe que a perdoasse, porque esse Igor não era apenas uma de suas mentiras, ele também era seu tio. Um tio inventado, certo, mas, ainda assim, um tio. Igor lhe disse que não se lamentasse, que a vida que ela inventara para ele talvez nem sempre tivesse sido fácil, mas que ele aproveitara cada minuto, e ela não tinha com o que se preocupar, porque, comparado ao acidente de trem em Minsk, o raio que o atingiu em Vladivostok e as mordidas da matilha de lobos raivosos na Sibéria, aquele ataque cardíaco era uma ninharia. E então eles voltaram para a máquina de chicletes, Robi introduziu uma moeda de uma lira na fenda, segurou a mão de Natasha e pediu-lhe que girasse a manivela.

De volta ao pátio, Natasha encontrou na palma da mão uma bola de plástico, com um brinde dentro: um medalhão de plástico dourado e feio, com o formato de coração.

Sabe – ela disse para Robi –, eu deveria ir para o Sinai hoje à noite com uma amiga, por alguns dias, mas acho que vou cancelar e voltar para cá amanhã para cuidar de Igor. Quer vir também?

Robi assentiu. Sabia que, para ir com ela, teria que inventar alguma mentira no escritório. Apesar de ainda não ter planejado qual, ele sabia que seria uma mentira alegre, cheia de luz, flores e sol. E, quem sabe, talvez até mesmo um ou dois bebês sorrindo.

Etgar Keret, in De repente, uma batida na porta

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