domingo, 13 de setembro de 2020

Mais um exemplo da porosidade de certas fronteiras (XI)

Como em todos aqueles outros sonhos, eu estou com alguém que conheço mas não sei como conheço e agora a pessoa de repente me mostra que eu estou cego. Literalmente cego, sem visão etc. Ou então é na presença dessa pessoa que eu de repente me dou conta de que estou cego. O que acontece quando eu entendo isso é que eu fico triste. Me deixa incrivelmente triste eu estar cego. A pessoa de alguma forma sabe como eu fiquei triste e me avisa que chorar vai machucar meus olhos de alguma forma e fazer a cegueira ficar ainda pior, mas eu não consigo evitar. Sento e começo a chorar muito mesmo. Acordo chorando na cama e chorando tanto que não consigo enxergar nada nem distinguir nada, nada. Isso me faz chorar ainda mais. Minha namorada fica preocupada, acorda, me pergunta o que foi, e passa um minuto ou mais antes de eu entender pelo menos que estava sonhando e que estou acordado e que não estou cego de verdade mas só chorando sem nenhuma razão, daí conto o sonho para a minha namorada e faço ela entender. Aí o dia inteiro no trabalho estou incrivelmente consciente da minha visão, dos meus olhos e de como é bom ser capaz de ver cores, a cara das pessoas e saber exatamente onde eu estou e como isso tudo é frágil, o mecanismo do olho humano e a capacidade de ver, como se pode perder isso com facilidade, como estou sempre vendo gente cega por aí com suas bengalas e caras estranhas e fico sempre pensando que seria interessante passar uns segundos olhando para elas e nunca pensando que elas têm nada a ver comigo ou com os meus olhos e agora é apenas uma coincidência uma sorte eu enxergar em vez de ser um daqueles cegos que vejo no metrô. E o dia inteiro no trabalho cada vez que essa história me volta começo a lacrimejar de novo, pronto para chorar e só não choro porque a divisão entre os cubículos é baixa e todo mundo ia me ver, iam ficar preocupados e o dia inteiro depois do sonho é assim, cansativo para danar e eu bato o ponto cego e vou para casa, tão cansado, com tanto sono que nem consigo abrir os olhos e quando chego em casa vou direto para a cama e durmo sei lá às quatro da tarde e apago mais ou menos.
David Foster Wallace, in Breves entrevistas com homens hediondos

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