Um
amigo falou-me de uma banca de doutorado de que participou. Era sobre
os índios Ianomâmi, mais especificamente, sobre seus rituais
antropofágicos. Os rituais antropofágicos, nós os sentimos como
primitivos e repulsivos. Mas os Ianomâmi têm explicações
diferentes. “Vocês se chamam de civilizados e nos consideram
selvagens por devorarmos os nossos mortos. Vocês não amam os seus
mortos. Fazem sepulturas profundas para enterrá-los e para serem
devorados pelos vermes. Mas nós os amamos. Queremos que eles vivam.
E há uma única forma de fazê-los viver: se eles viverem em nós,
se eles forem incorporados ao nosso sangue e à nossa carne. Mas,
para que isso aconteça, para que eles continuem vivos, é preciso
que nós os comamos.”
Murilo
Mendes escreveu: “No tempo em que eu não era antropófago, isto é,
no tempo em que eu não devorava livros – e os livros não são
homens, não contêm a substância, o próprio sangue do homem?” (A
idade do serrote).
Há
autores que li sem que os tivesse amado. Não os devorei. Suas ideias
ficaram guardadas na minha cabeça. Outros, que amei, devorei.
Passaram a fazer parte do meu corpo. Aquilo que se come não continua
o mesmo, depois de comido. É assimilado – fica semelhante a mim.
Batatas, cenouras e carnes, uma vez comidas, deixam de ser batatas,
cenouras e carnes. Passam a ser parte de mim mesmo, minha carne, meu
sangue. Assim acontece com os autores que devorei e cito. Só os cito
porque se tornaram parte da minha carne e do meu sangue. Eu os
conheço “de cor” – isto é, como parte do meu coração.
Deixaram de ser eles. São eu. A eucaristia é uma metamorfose
alquímica pela qual uma substância é transformada em outra: o pão
e o vinho se tornam carne e sangue. Quem come o pão e bebe o vinho
come a carne e bebe o sangue. Eucaristia é antropofagia. A essa
magia os teólogos medievais davam o nome de transubstanciação: uma
substância se transforma em outra. Nietzsche e Guimarães Rosa falam
sobre uma alquimia parecida, em que o sangue é transformado em
palavra. Quem lê, bebe o sangue de quem escreveu. O ritual da
leitura é, como a eucaristia, uma refeição antropofágica.
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
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