Uma semana antes do casamento, foram os dois ao cinema ver um filme, se não me engano, de Clark Gable. No fim, o mocinho era assassinado da maneira mais ignominiosa e pelas costas. E, assim, varado de balas, Clark Gable agonizou e morreu no colo da mocinha. Alberto saiu do cinema indignado:
— Ora, bolas!
— Quê, meu filho?
E ele:
— Ah, se eu soubesse que acabava assim, não vinha, nem amarrado!
— Eu gostei.
O rapaz parou, no meio da calçada:
— Gostou? Oh, toma jeito, Conceição. Tira o cavalo da chuva! Te digo mais: foi o fim mais besta que eu já vi na minha vida!
Ela, temperamento macio, doce, não insistiu. Tinha horror às discussões. Mas, no fundo, gostara mesmo do desfecho sinistro. As fitas que acabavam mal, em morte, agonia e luto, causavam nela um duplo sentimento de fascínio e repulsa. A coisa que mais adorava era ver a heroína, de luto fechado, chorando o bem-amado morto. Ou vice-versa. E quando não havia, em causa, um morto ou morta, ela, na plateia, ao lado de Alberto, bocejava, desinteressada de tudo e de todos, querendo voltar para casa.
O soluço
Era uma boa menina, delicada, de uma fragilidade física impressionante. Constava, mesmo, que sofria do coração, e a família, preocupada, vivia atrás dela, cheia de cuidados e prevenções: “Fulana, não faz isso! Não faz aquilo! Sobe a escada devagar!”
Se apanhava um resfriado trivial, se acusava uma coriza sem maiores consequências, pai, mãe, tias, se arremessavam em pânico. Era colocada na cama, quase que à força; fechavam todas as janelas, por causa dos golpes de ar; e, de dez em dez minutos, impingia-se o termômetro na axila da pequena. Havia, naquela família de emotivos, de nervosos, a ideia de que Conceição ia morrer, de repente, em plena mocidade.
Uma das tias, velha solteirona, já chorava por conta.
Quanto ao noivo, o Alberto, formava, com a menina, um contraste escandaloso. Tostado de sol, um físico de Victor Macture, carnudo, atlético, tudo nele parecia exprimir um apetite vital tremendo. Com uma saúde de ferro, não pensava na morte, julgava-se mais ou menos eterno.
Ao voltar do cinema, com a noiva, sete dias antes do casamento, fez-lhe um pedido formal:
— Queres me fazer um favor?
— Faço.
Insistiu.
— Um favor de mãe pra filho?
— Claro!
— Então não me fala mais em morte, sim? Arranja outro assunto, meu anjo.
Que diabo!
Ele reclamava e, vamos e venhamos, com razão. Porque, desde o começo do namoro, o assunto de Conceição era esse. Ou falava na morte alheia ou se divertia imaginando a própria.
Fazia as perguntas mais surpreendentes, como, por exemplo, esta:
— Será que eu vou ficar feia, quando morrer?
O rapaz, mais do que depressa, procurava uma madeira, batia, ao berro de:
— Isola!
De fato, ela queria ser e fazia questão de ser uma morta bonita, dessas que “parecem dormir”. E se não falava de si mesma, falava dos outros. Já contara e recontara ao noivo, não sei quantas vezes, todas as agonias e todas as mortes da família. Sobretudo a morte do avô. Durante 15 dias, o velho teve um soluço que resistia, bravamente, a tudo. O médico da família dera injeção, o diabo, mas em pura perda. Até que veio a morte e o ancião pode descansar.
Durante vários dias, a família, na obsessão auditiva daquele soluço imortal, julgava ouvi-lo, muito depois do enterro, nas salas, nos quartos, nos corredores.
E Alberto, apesar de sua vitalidade quase bestial, deixou-se impressionar por essa infinita agonia.
Sonhou com o soluço sobrenatural. Via o gogó do moribundo subindo e descendo. O pior é que, no fim de certo tempo, ele também começou a se interessar, a se apaixonar pelas histórias fúnebres.
De vez em quando, procurava reagir, como no caso do filme de Clark Gable.
Mas, quantas vezes, sem sentir, ficou horas ouvindo Conceição falar dos parentes mortos?
Ia para casa pensando em assombração e fazia, com uma graça triste, a reflexão:
— Eu acabo maluco e a família não sabe!
O casamento
Até que chegou o dia do casamento, ou como disse o médico da família, numa satisfação profunda, o “grande dia”.
No quarto, vestindo-se, Conceição criava uma hipótese deslumbrante: a de morrer, no altar, com grinalda e véu. Essa morte muito linda a tentou de uma maneira quase irresistível. Quando uma das tias, com infinito cuidado, colocou a grinalda, Conceição não se conteve, fez a pergunta quase alegre e frívola:
— E se eu morresse hoje?
Em redor, houve um burburinho:
— Cruz, credo!
Foi repreendida:
— Você tem cada uma!
Deixou-se levar para a igreja, ia numa ardente meditação. Entretanto, não morreu no altar, embora tanto o desejasse. Voltou para a casa dos pais, toda iluminada.
O noivo a olhava muito e parecia dizer: “Minha!” Estava em plena euforia da propriedade.
Na saída, debaixo de uma apoteose de arroz, ele quase pragueja, pois se lembrara, sem que nem pra que, do soluço imortal do avô. Rosnou para si mesmo: “Carambolas!”
Mas a felicidade subiu-lhe à cabeça: esqueceu o velho defunto.
Durante 48 horas, foram o homem e a mulher mais felizes do mundo. Maravilhada com o amor, Conceição não falava na morte. Sem sentir, a relegara para um plano inteiramente secundário. Já admitia que a vida fosse assim, sempre, e que jamais os problemas práticos pudessem interferir na lua de mel!
Todavia, 48 horas depois, cometeu uma imprudência: levantou-se, de manhã cedinho, no seu pijama leve, de um cinza transparente, e foi, descalça, para o banheiro. As chinelinhas de arminho ficaram embaixo da cama.
Lá no banheiro, escovou os dentes, sem pressa e sempre com os pés nus no ladrilho frio.
Depois, ocorreu-lhe um voluptuoso capricho: chamou o marido e, juntos, tomaram banho. Brincaram um tempão debaixo do chuveiro.
Outra qualquer faria isso e muito mais, sem conse-quências. Conceição, porém, era de uma fragilidade apavorante.
No café, ao pôr manteiga nas fatias torradas, experimentou um arrepio. Fez o brevíssimo comentário:
— Ué!
Mais tarde, veio a coriza. Depois, uma febrícula. À meia-noite e pouco, ela, com a temperatura mais elevada e atormentada pelo frio, chamou o marido que, ao lado, cochilava.
Baixou a voz:
— Eu vou morrer, Alberto!
— Que ideia!
— Vou sim, Alberto. Sei que vou morrer!
Ele acabou praguejando:
— Perde essa mania de morte, Conceição! Isso que você tem é um resfriado bobo!…
A promessa
Alta madrugada, ela o acordou de novo. A febre a embelezava, dava-lhe graça triste e ardente. Estava com a obsessão da morte. Repetia com uma doce e monótona tristeza: “Vou morrer, vou morrer...”
O marido, já com um começo de medo, ensaiou o protesto prosaico:
— Sossega!
Ela, surda às objeções, aos contra-argumentos, explicava que uma só coisa a apavorava na morte, era ser enterrada. Desde criança ouvia falar em “terra fria”, em “sete palmos de terra”, em “túmulo”, “jazigo perpétuo”, etc., etc.
Parecia-lhe que os defuntos deviam sentir a falta de ar e de luz.
Seria tão bom que os mortos pudessem ficar em casa, na sala, no quarto, com as mãos em repouso, entrelaçadas. Era a febre, com certeza, que a fazia dizer essas loucuras.
Malgrado seu, o marido se deixava impressionar. Dir-se-ia que a febre da esposa se transmitia a ele e o embriagava, também. Pensou: “Acabo doido!”
Quase ao amanhecer, Conceição, mais febril do que nunca, fez-lhe o pedido:
— Se eu morrer,não quero ser enterrada. Você esconde o meu corpo debaixo de qualquer coisa...
Ele, alarmado, não sabia o que dizer:
— Morrer como? Ninguém vai morrer, ora essa, que bobagem!
Conceição teimava, abraçada a ele, falando quase boca com boca:
— Jura que não serei enterrada, jura!
Acabou admitindo:
— Juro.
— Por Deus?
— Por Deus!
Por sua vez, cansado, ele cochilou mais meia hora. Foi o bastante para sonhar com o soluço do avô.
Acordou e, durante alguns momentos, teve uma alucinação auditiva. Ouvia o soluço. Não podia ser, meu Deus, era impossível! Só então percebeu: quem estava com soluço era Conceição.
Quis chamar um médico, ou alguém, mas a mulher, já acordada, não deixou. E, na verdade, ele já não acreditava em nenhum remédio terreno para o mal sutil e inexplicável que estava levando a pequena.
Vez por outra, dizia de si para si: “Não estou raciocinando direito.” Mas já a própria loucura não o assustava. Talvez a desejasse como uma solução. Durante dois dias não saiu do quarto. Encerrado, ali, o casal tinha uma companhia única: o soluço. Alberto dormia e, no próprio sonho, o escutava. Ao despertar, lá estava ele. Mas, uma manhã, acordou e não ouviu nada.
Compreendeu que a esposa estava morta.
Monte Cristo
Cinco dias depois, os vizinhos começaram a sentir um cheiro horrível. Investiga daqui, dali, acabaram desconfiando. Entraram no quarto e encontraram a esposa morta e o marido, sentado no chão, de barba crescida, quase à Monte Cristo.
Os mais sensíveis levaram o lenço ao nariz. Alberto, quase sem voz, explicou que a mulher pedira para não ser enterrada. Levaram-no, do quarto, moribundo e variando. Sua última pergunta foi esta:
— Não estão ouvindo um soluço?
Nelson Rodrigues, in A vida como ela é
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