[…]
após concluir que um pato feliz seria melhor aluno que um pato
rancoroso, ele aboliu a dieta de Fup, e até lhe deu um pouco mais
que as rações normais, já por si opulentas, a fim de fazer as
pazes. Logo recuperou suas boas graças, e Miúdo ficou tremendamente
aliviado.
Com
a afeição e o respeito recobrados, ele planejou as premissas e a
mecânica, e então começou por aquilo que a razão lhe dizia ser o
início: para se voar, era preciso bater as asas.
Assis,
todas as tardes, exceto aos domingos, cara a cara na varanda, vovô
Jake tentava ensinar Fup a bater as asas. Não era fácil. Ela as
estendia como que arejando as axilas e às vezes tentava batê-las
numa agitação incoerente, mas não parecia interessada em fazê-lo
com continuidade. Ele persistiu. De pé na varanda, descalço,
malhando o ar com os braços ossudos, prometia-lhe, a cada batida de
asas, os êxtases do voo; prometia que era melhor do que gozar a
noite inteira com uma gostosinha de 16 anos das fazendas do interior
de Iowa; melhor que pão francês com manteiga derretida; melhor que
o luar banhando os pinheiros prateados e as folhas de baunilha;
melhor que uma explosão de botões de flores no âmago do cérebro –
o voo era tudo o que se podia comer, tudo o que se podia querer, uma
liberdade imensa e um divertimento enorme. Uma hora por dia, até os
braços doerem e a cara assumir uma cor roxa embaçada, e ainda assim
continuava, discursando, excitado, sobre os segredos de um êxtase
que, mesmo sem conhecer, tinha a fé ou a burrice de prometer.
Um
dia, após dois meses de ensino obstinado, Fup começou a bater as
asas, em conjunto com vovô, que malhava o ar loucamente. Vovô Jake
regozijou-se.
Quando
Fup aprendeu a bater as asas de cor e salteado, vovô concluiu que o
passo seguinte era a decolagem e, a fim de praticarem, mudaram-se
para o quintal da frente. Jake deu algumas corridas curtas pelo
quintas, a meia velocidade, para demonstrar a técnica básica. Fup
entendeu entendeu imediatamente, e logo os dois estavam mandando ver,
ladeira abaixo, em direção ao laguinho, os respectivos braços e
asas golpeando o ar numa tentativa de decolagem – no entanto,
embora o voo sussurrasse para seus corpos, acenando, nenhum dos dois
chegou a deixar o chão nas duas primeiras tentativas. Na terceira,
quando Jake deu tudo o que tinha, as pernas bambeando, os braços
batendo loucamente, sentiu o primeiro tremor da ascensão se libertar
dentro de si; como qualquer bom professor faria, olhou para trás
para ver se Fup já estava no ar, e naquele instante de atenção
dividida deu de cara na nogueira e caiu duro, mais frio que o zero
absoluto.
Quando
voltou a si, estranhamente calmo, Fup estava gingando a seu redor,
grasnando de preocupação. Estendeu a mão para confortá-la,
sentou-se e começou a fazer o balanço dos danos – um ato, pensou,
que estava começando a ocorrer com uma regularidade deprimente. O
nariz estava quebrado, ou pelo menos bem solto. O lábio superior
tinha um corte feio, mas não tanto quanto no dia em que Alma May,
sua terceira ou quarta mulher, lhe batera com o espremedor de batatas
por ele ter sugerido trapar à moda dos cachorros na mesa da cozinha.
O lábio, como o nariz, ia sangrar. Mas o que o deprimiu foi
descobrir que tinha perdido os dois últimos dentes que se juntavam,
e enquanto passava a língua nas cavidades salgadas e sensíveis
sentiu uma fadiga melancólica infiltrar-se em seu sangue. Passar a
eternidade desdentado era uma perspectiva lúgubre, mas, quem sabe
talvez após umas duas centenas de anos as gengivas ficassem bastante
duras para aguentar o confronto com uma porção de costeletas. Só
tinha que ficar quieto e ter fé, esse era o fator principal. Não
havia razão para desistir. Mas estava contente porque o dia seguinte
era domingo e não que dar aula de voo para Fup. Sentia-se fatigado.
Tinha uma necessidade enorme de descansar. Andava levando porradas
violentas ultimamente e precisava pensar no assunto, entender o que,
com os diabos, andava acontecendo. Havia alguma coisa, isso era
certo. Mas também tinha certeza de que provavelmente jamais
entenderia o que era, e isso contribuía fortemente para que se
sentisse exausto. Era um quebra-cabeça em que nem todas as peças
cabiam. Sabia que era melhor acostumar-se com isso, se fosse levar a
sério esse negócio de imortalidade. Estava perto de 100 anos,
agora. Quase sem dentes e perdendo fôlego; e, pensou consigo mesmo,
se as coisas continuassem desse jeito, não levaria muito tempo até
precisar de um corpo novinho para acompanhar-lhe o espírito.
Jim
Dodge, in Fup
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