quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Vovô Jake e esse negócio de imortalidade

[…] após concluir que um pato feliz seria melhor aluno que um pato rancoroso, ele aboliu a dieta de Fup, e até lhe deu um pouco mais que as rações normais, já por si opulentas, a fim de fazer as pazes. Logo recuperou suas boas graças, e Miúdo ficou tremendamente aliviado.
Com a afeição e o respeito recobrados, ele planejou as premissas e a mecânica, e então começou por aquilo que a razão lhe dizia ser o início: para se voar, era preciso bater as asas.
Assis, todas as tardes, exceto aos domingos, cara a cara na varanda, vovô Jake tentava ensinar Fup a bater as asas. Não era fácil. Ela as estendia como que arejando as axilas e às vezes tentava batê-las numa agitação incoerente, mas não parecia interessada em fazê-lo com continuidade. Ele persistiu. De pé na varanda, descalço, malhando o ar com os braços ossudos, prometia-lhe, a cada batida de asas, os êxtases do voo; prometia que era melhor do que gozar a noite inteira com uma gostosinha de 16 anos das fazendas do interior de Iowa; melhor que pão francês com manteiga derretida; melhor que o luar banhando os pinheiros prateados e as folhas de baunilha; melhor que uma explosão de botões de flores no âmago do cérebro – o voo era tudo o que se podia comer, tudo o que se podia querer, uma liberdade imensa e um divertimento enorme. Uma hora por dia, até os braços doerem e a cara assumir uma cor roxa embaçada, e ainda assim continuava, discursando, excitado, sobre os segredos de um êxtase que, mesmo sem conhecer, tinha a fé ou a burrice de prometer.
Um dia, após dois meses de ensino obstinado, Fup começou a bater as asas, em conjunto com vovô, que malhava o ar loucamente. Vovô Jake regozijou-se.
Quando Fup aprendeu a bater as asas de cor e salteado, vovô concluiu que o passo seguinte era a decolagem e, a fim de praticarem, mudaram-se para o quintal da frente. Jake deu algumas corridas curtas pelo quintas, a meia velocidade, para demonstrar a técnica básica. Fup entendeu entendeu imediatamente, e logo os dois estavam mandando ver, ladeira abaixo, em direção ao laguinho, os respectivos braços e asas golpeando o ar numa tentativa de decolagem – no entanto, embora o voo sussurrasse para seus corpos, acenando, nenhum dos dois chegou a deixar o chão nas duas primeiras tentativas. Na terceira, quando Jake deu tudo o que tinha, as pernas bambeando, os braços batendo loucamente, sentiu o primeiro tremor da ascensão se libertar dentro de si; como qualquer bom professor faria, olhou para trás para ver se Fup já estava no ar, e naquele instante de atenção dividida deu de cara na nogueira e caiu duro, mais frio que o zero absoluto.
Quando voltou a si, estranhamente calmo, Fup estava gingando a seu redor, grasnando de preocupação. Estendeu a mão para confortá-la, sentou-se e começou a fazer o balanço dos danos – um ato, pensou, que estava começando a ocorrer com uma regularidade deprimente. O nariz estava quebrado, ou pelo menos bem solto. O lábio superior tinha um corte feio, mas não tanto quanto no dia em que Alma May, sua terceira ou quarta mulher, lhe batera com o espremedor de batatas por ele ter sugerido trapar à moda dos cachorros na mesa da cozinha. O lábio, como o nariz, ia sangrar. Mas o que o deprimiu foi descobrir que tinha perdido os dois últimos dentes que se juntavam, e enquanto passava a língua nas cavidades salgadas e sensíveis sentiu uma fadiga melancólica infiltrar-se em seu sangue. Passar a eternidade desdentado era uma perspectiva lúgubre, mas, quem sabe talvez após umas duas centenas de anos as gengivas ficassem bastante duras para aguentar o confronto com uma porção de costeletas. Só tinha que ficar quieto e ter fé, esse era o fator principal. Não havia razão para desistir. Mas estava contente porque o dia seguinte era domingo e não que dar aula de voo para Fup. Sentia-se fatigado. Tinha uma necessidade enorme de descansar. Andava levando porradas violentas ultimamente e precisava pensar no assunto, entender o que, com os diabos, andava acontecendo. Havia alguma coisa, isso era certo. Mas também tinha certeza de que provavelmente jamais entenderia o que era, e isso contribuía fortemente para que se sentisse exausto. Era um quebra-cabeça em que nem todas as peças cabiam. Sabia que era melhor acostumar-se com isso, se fosse levar a sério esse negócio de imortalidade. Estava perto de 100 anos, agora. Quase sem dentes e perdendo fôlego; e, pensou consigo mesmo, se as coisas continuassem desse jeito, não levaria muito tempo até precisar de um corpo novinho para acompanhar-lhe o espírito.
Jim Dodge, in Fup

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