E
de repente aquela dor intolerável no olho esquerdo, este
lacrimejando, e o mundo se tornando turvo. E torto: pois fechando um
olho, o outro automaticamente se entrefecha. Quatro vezes no decorrer
de menos de um ano um objeto estranho entrou no meu olho esquerdo:
duas vezes ciscos, uma vez um grão de areia, outra um cílio. Das
quatro vezes tive que procurar um oftalmologista de plantão. Da
última vez perguntei ao Dr. Murilo Carvalho, cirurgião dos
Oculistas Associados, e também um artista em potencial que realiza
sua vocação através de cuidar por assim dizer de nossa visão do
mundo:
– Por
que sempre o olho esquerdo? É simples coincidência?
Ele
respondeu não; que, por mais normal que seja uma vista, um dos olhos
vê mais que o outro e por isso é mais sensível. Chamou-o de “olho
diretor”. E, por ser mais sensível, disse ele, prende o corpo
estranho, não o expulsa.
Quer
dizer que o melhor olho é aquele que mais sofre. É a um só tempo
mais poderoso e mais frágil, atrai problemas que, longe de serem
imaginários, não poderiam ser mais reais que a dor insuportável de
um cisco ferindo e arranhando uma das partes mais delicadas do corpo.
Fiquei
pensativa.
Será
que é só com os olhos que isso acontece? Será que a pessoa que
mais vê, portanto a mais potente, é a que mais sente e sofre. E a
que mais se estraçalha com dores tão reais quanto um cisco no olho.
Fiquei
pensativa.
Clarice
Lispector, in Todas as crônicas
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