quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Venenos de Deus, remédios do Diabo - capítulo 12



De onde tu és? — perguntou Deolinda.
Sou da Guarda.
Ingénua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa:
Tu és o meu anjo-da-guarda.
O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.
Tens medo de fazer amor comigo?
Tenho — respondeu ele.
Por eu ser preta?
Tu não és preta.
Aqui, sou.
Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
Tens medo que eu esteja doente…
Sei prevenir-me.
É porquê, então?
Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.
Que olhar é meu nos olhos teus?
Nessa noite se solveram, mãos de oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia.
Amar — disse ele — é estar sempre chegando.
Um ano depois, sentado sobre um banco de pedra, o português sente estar ainda chegando a Vila Cacimba enquanto convoca as memórias do encontro com a mulata Deolinda. O que faltava, agora, para que ele se sentisse já chegado?
Lembrou os versos que ele próprio rabiscara na ausência de Deolinda: “Eu sou o viajante do deserto que, no regresso, diz: viajei apenas para procurar as minhas próprias pegadas. Sim, eu sou aquele que viaja apenas para se cobrir de saudades. Eis o deserto, e nele me sonho; eis o oásis, e nele não sei viver”.
Na poesia, haveria oásis e desertos. Mas, em Vila Cacimba, havia apenas uma praça onde um médico estrangeiro se banhava nas lembranças de sua amada. É no meio dessa praça que esse médico aspira o ar fresco e sorri de satisfação: no seu país é Outono e, àquela hora, ele estaria submerso entre o frio cinzento.
Esses são os pensamentos de Sidónio Rosa enquanto se dirige a casa dos Sozinhos. Desta vez, porém, não entra. Está um dia demasiado luminoso para ele se adentrar naquele escuro. Ronda a casa, em bicos de pés, e bate na janela do quarto de Bartolomeu. Ensonado, o rosto do velho, inquisitivo, enfrenta a claridade.
Deixe a janela aberta que é para respirar este arzinho da manhã — convida o médico.
É uma coisa boa desta nossa Vila: o ar aqui é muito abundante. Isto não é atmosfera. Isto aqui, caro Doutor, é artmosfera.
Passa por eles um grupo de mulheres que saúdam apenas o médico, evitando olhar para o velho sem camisa que se debruça sobre o parapeito da janela.
Donas mal comidas — resmunga Bartolomeu.
As mulheres da Vila não gostam das manhãs. É o tempo em que os maridos saem de casa. Para Dona Munda sempre fora o oposto. Durante toda a vida aquela tinha sido a melhor parte do dia. A ausência de Bartolomeu só lhe trazia alívio. Agora, tudo se invertera. O marido era uma presença obsidiante, uma espécie de corcunda que pesava sem descanso sobre o seu dorso.
Gosto de sentir a Vila, assim cedinho — disse o português. — Gosto de ver como se vai cobrindo de gente.
Odeio gente — rosnou Bartolomeu.
Não tarda que os passeios se encham de vendedeiras.
Estes não são gente da Vila. Os que o senhor vê por aqui são os que ainda não saíram.
Hoje está um dia límpido numa vila que se chama Cacimba. Porquê estragar esta luz, meu caro paciente?
Eles não saíram da Vila. Eu não saí da Vida.
O médico olha o céu e abre os braços como se quisesse abraçar a imensidão. A intenção do gesto é clara: nada alterará o seu bom humor.
Não quer mesmo entrar, Doutor?
O português argumenta que está de passagem, sem função profissional. O seu afazer, naquele dia, era apenas ser feliz.
Eu tenho uma curiosidade muito impessoal — diz Bartolomeu, após uma pausa.
O que quer saber?
Você não veio para África apenas por causa de Deolinda.
Então, foi porquê?
Ninguém sai da sua terra só por causa de uma mulher. Você saiu por outro motivo.
E porquê?
Por exemplo, porque não era feliz.
Saímos para o estrangeiro quando a nossa terra já saiu de nós. Ele, Bartolomeu Sozinho, sabia disso, calejado que estava de remotos paradeiros.
Eu não saí de Portugal. Apenas vim buscar uma mulher.
É assim que responde, mas, de si para si, reconhece: na sua terra não era feliz. Mais grave ainda: ele não mais sabia o que era o desejo de ser feliz. Em Lisboa estava entre família, no meio de tanta gente conhecida. Quando saiu para África receou que passaria a sofrer de solidão. Todavia, agora sabia: há muito que estava só. Solitário entre parentes e conhecidos. Ou como diz Bartolomeu, há muito que Sidónio Rosa deixara de ter quem o abençoasse.
Mundinha disse que o seu pai morreu aqui, em África. É verdade?
É verdade — admitiu o português —, não me vai dizer que venho visitar o espírito dele.
Os espíritos não se visitam. Nós é que somos visitados.
De qualquer modo, o corpo do meu velho não mora aqui. Transladaram-no para a terra dele.
O pai de Sidónio tinha-se exilado pouco tempo depois de ele ter nascido. Acreditava estar a fugir do fascismo. Mas a ditadura era apenas a máscara daquilo que ele fugia. Escapava do vazio que está para além dos regimes políticos. Desse mesmo vazio estava fugindo, quarenta anos depois, Sidónio Rosa.
Pois eu lhe digo: dói mais termos que fugir da democracia…
Isso não sei, eu fujo apenas da minha mulher, e já me chega por motivo.
Por outro lado, o reformado não se importava nada de fugir das Suacelências todas que pululavam no país. Desses, como ele diz, a quem o cu cresce mais que a cadeira.
Noutro dia, você zangou-se comigo porque eu não o chamava pelo seu nome inteiro. Mas eu conheço o seu segredo.
Não tenho segredos. Quem tem segredos são as mulheres.
O seu nome é Tsotsi. Bartolomeu Tsotsi.
Quem lhe contou isso? De certeza que foi o cabrão do Administrador.
Acabrunhado, Bartolomeu aceitou. Primeiro, foram os outros que lhe mudaram o nome, no baptismo. Depois, quando pôde voltar a ser ele mesmo, já tinha aprendido a ter vergonha do seu nome original. Ele se colonizara a si mesmo. E Tsotsi dera origem a Sozinho.
Eu sonhava ser mecânico, para consertar o mundo. Mas aqui para nós que ninguém nos ouve: um mecânico pode chamar-se Tsotsi?
Ini nkabe dziua. (“Eu não sei”)
Ah, o Doutor já anda a aprender a língua deles?
Deles? Afinal, já não é a sua língua?
Não sei, eu já nem sei…
O português confessa sentir inveja de não ter duas línguas. E poder usar uma delas para perder o passado. E outra para ludibriar o presente.
A propósito de língua, sabe uma coisa, Doutor Sidonho? Eu já me estou a desmulatar.
E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. O médico franze o sobrolho, confrangido: a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa esbranquiçada.
Quais fungos? — reage Bartolomeu. — Eu estou é a ficar branco de língua, deve ser porque só falo português…
O riso degenera em tosse e o português se afasta, cauteloso, daquele foco contaminoso. Quase colide com Suacelência que acaba de cruzar a estrada. O Administrador vem esbaforido e cumprimenta, de forma esquiva, os presentes. Detém-se sob a janela, aproveita a sombra para enxugar meticulosamente o afogueado rosto.
Então, Excelência — inquire o velho Sozinho —, tão cedo e já anda a chatear as moscas?
Que se passa, Suacelência? — pergunta o português, emendando a indelicadeza do seu paciente.
A rapaziada da banda eleitoral — suspira, contendo uma emergente onda de fúria —, a rapaziada fugiu com os instrumentos.
Mas isso é um bambúrrio de azar. Então os bandos roubaram-lhe a banda?
Ignorando o tom irónico da pergunta, o Administrador acena com gravidade. Não se tratava, segundo ele, de um simples furto. Aquilo era uma cabala política, manobra dos inimigos da Pátria.
Um feiticeiro conhece todos os feiticeiros… — ironiza o velho Sozinho.
Por que não me respeita, Bartolomeu? A mim que fiz tanto pelo país?
O país preferia que o senhor não tivesse feito nada.
Por que não gosta de mim?
Eu gosto da minha terra, da minha gente. E o senhor gosta de quem?
Contudo, o Administrador já desandou, estrada fora, coxeando levemente. Bartolomeu e Sidónio ficam olhando a figura do dirigente desvanecer-se como se assistissem ao seu ocaso político.
Sinto pena dele — admite o português.
Pois eu estou-me merdando para o gajo — remata Bartolomeu.
Ri-se para reafirmar o desprezo. E logo lhe sobrevém um ataque de tosse que o deixa sem respirar.
Puta de vida — diz —, não vivemos se não nos rimos e depois morremos por nos termos rido — e conclui, após recuperar fôlego: — O Doutor acha que sou uma anormalidade?
O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é o seu único amigo em Vila Cacimba. O aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.
Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
Depende — responde o português.
O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
Sim.
Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
Me receite um remédio para eu desmaiar.
O português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.
Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

Nenhum comentário:

Postar um comentário