Os
primeiros calores da nova estação, tão antigos como um primeiro
sopro. E que me faz não poder deixar de sorrir. Sem me olhar ao
espelho, é um sorriso que tem a idiotice dos anjos.
Muito
antes de vir a nova estação já havia o prenúncio: inesperadamente
uma tepidez de vento, as primeiras doçuras do ar. Impossível!
impossível que essa doçura de ar não traga outras! diz o coração
se quebrando.
Impossível,
diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera.
Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! repete o coração
que parte sua secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que
já o trouxe, que aquilo é amor. Esse primeiro calor ainda fresco
traz: tudo. Apenas isso, e indiviso: tudo.
E
tudo é muito para um coração de repente enfraquecido que só
suporta o menos, só pode querer o pouco e aos poucos. Sinto hoje, e
também mordente, uma espécie de lembrança ainda vindoura do dia de
hoje. E dizer que nunca, nunca dei isto que estou sentindo a ninguém
e a nada. Dei a mim mesma? Só dei na medida em que a pungência do
que é bom cabe dentro de nervos tão frágeis, de mortes tão
suaves. Ah, como quero morrer. Nunca ainda experimentei morrer –
que abertura de caminho tenho ainda à frente. Morrer terá a mesma
pungência indivisível do bom. A quem darei a minha morte? que será
como os primeiros calores frescos de uma nova estação. Ah, como a
dor é mais suportável e compreensível que essa promessa de frígida
e líquida alegria da primavera. É com tal pudor que espero morrer:
a pungência do bom. Mas nunca morrer antes de realmente morrer: pois
é tão bom prolongar essa promessa. Quero prolongá-la com tal
finura. Eu me banho, nutro-me da vida melhor e mais fina, pois nada é
bom demais para me preparar para o instante dessa nova estação.
Quero os melhores óleos e perfumes, quero a vida da melhor espécie,
quero as esperas as mais delicadas, quero as melhores carnes finas e
também as pesadas para comer, quero a quebra de minha carne em
espírito e do espírito se quebrando em carne, quero essas finas
misturas – tudo o que secretamente me adestrará para aqueles
primeiros momentos que virão. Iniciada, pressinto a mudança de
estação. E desejo a vida mais cheia de um fruto enorme. Dentro
desse fruto que em mim se prepara, dentro desse fruto que é
suculento, há lugar para a mais leve das insônias que é a minha
sabedoria de bicho acordado: um véu de alerteza, esperta apenas o
bastante para apenas pressentir. Ah, pressentir é mais ameno do que
o intolerável agudo do bom. E que eu não esqueça, nessa minha fina
luta travada, que o mais difícil de se entender é a alegria. Que eu
não esqueça que a subida mais escarpada, e mais à mercê dos
ventos, é sorrir de alegria. E que por isso e aquilo é que menos
tem cabido em mim: a delicadeza infinita da alegria. Pois quando me
demoro demais nela e procuro me apoderar de sua levíssima vastidão,
lágrimas de cansaço me vêm aos olhos: sou fraca diante da beleza
do que existe e do que vai existir. E não consigo, nesse
adestramento contínuo, me apoderar do primeiro regozijo da vida.
Conseguirei
captar o regozijo infinitamente doce de morrer? Ah, como me inquieta
não conseguir viver o melhor, e assim poder enfim morrer o melhor.
Como me inquieta que alguém possa não compreender que morrerei numa
ida para uma tonta felicidade de primavera. Mas não apressarei de um
instante a vinda dessa felicidade – pois esperá-la vivendo é a
minha vigília de vestal. Dia e noite não deixo apagar-se a vela –
para prolongá-la na melhor das esperas. Os primeiros calores da
primavera... mas isso é amor! A felicidade me deixa com um sorriso
de filha. Estou toda bem penteada. Só que a espera quase já não
cabe mais em mim. É tão bom que corro o risco de me ultrapassar, de
vir a perder a minha primeira morte primaveril, e, no suor de tanta
espera tépida, morrer antes. Por curiosidade, morrer antes: pois já
quero saber como é a nova estação.
Mas
vou esperar. Vou esperar comendo com delicadeza e recato e avidez
controlada cada mínima migalha de tudo, quero tudo pois nada é bom
demais para a minha morte que é a minha vida tão eterna que hoje
mesmo ela já existe e já é.
Clarice
Lispector, in Todas as crônicas
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