Lembro-me
como se fosse há oito bilhões de anos. Eu era uma célula
recém-chegada do fundo do miasma e ainda deslumbrado com a vida
agitada da superfície, e você era de lá, um ser superficial,
vivida, viciada em amônia, linda, linda. Nós dois queríamos e não
sabíamos o quê. Namoramos um milhão de anos sem saber o que fazer,
aquela ânsia. Deve haver mais do que isto, amar não deve ser só
roçar as membranas. Você dizia “Eu deixo, eu deixo”, e eu dizia
“O quê? O quê?”, até que um dia. Um dia minhas enzimas tocaram
as suas e você gemeu, meu amor, “Assim, assim!”. E você sugou
meu aminoácido, meu amor. Assim, assim. E de repente éramos uma só
célula. Dois núcleos numa só membrana até que a morte nos
separasse. Tínhamos inventado o sexo e vimos que era bom. E de
repente todos à nossa volta estavam nos imitando, nunca uma coisa
pegou tanto. Crescemos, multiplicamo-nos e o mar borbulhava. O desejo
era fogo e lava e o nosso amor transbordava. Aquela ânsia. Mais,
mais, assim, assim. Você não se contentava em ser célula. Uma zona
erógena era pouco. Queria fazer tudo, tudo. Virou ameba. Depois
peixe e depois réptil, meu amor, e eu atrás. Crocodilo, elefante,
borboleta, centopéia, sapo e de repente, diante dos meus olhos,
mulher. Assim, assim! Deus é luxúria, Deus é a ânsia. Depois de
bilhões de anos Ele acertara a fórmula. “É isso!”, gritei.
“Não mexe em mais nada!”
— Quem
sabe mais um seio?
— Não!
Dois está perfeito.
— Quem
sabe o sexo na cabeça?
— Não!
Longe da cabeça. Quanto mais longe melhor!
Linda,
linda. Mas algo estava errado. Não foi como antes.
— Foi
bom?
— Foi.
— Qual
é o problema?
— Não
tem problema nenhum.
— Eu
sinto que você está diferente.
— Bobagem
sua. Só um pouco de dor de cabeça.
— No
caldo primordial você não era assim.
— A
gente muda, né? Nós não somos mais amebas.
E
vimos que era complicado. Nunca reparáramos na nossa nudez e de
repente não se falava em outra coisa. Você cobriu seu corpo com
folhas e eu construí várias civilizações para esconder o meu. “Eu
deixo, eu deixo — mas não aqui.” Não agora. Não na frente das
crianças. Não numa segunda-feira! Só depois de casar. E o meu
presente? Depois você não me respeita mais. Você vai contar para
os outros. Eu não sou dessas. Só se você usar um quepe da Gestapo.
Você não me quer, você quer é reafirmar sua necessidade neurótica
de dominação machista, e ainda por cima usando as minhas ligas
pretas. O quê? Não faz nem três anos que mamãe morreu! Está bem,
mas sem o chicote. Eu disse que não queria o sexo na cabeça,
Senhor!
— Nós
somos como frutas, minha flor.
— Vem
com essa...
— A
fruta, entende? Não é o objetivo da árvore. Uma laranjeira não é
uma árvore que dá laranjas. Uma laranjeira é uma árvore que só
existe para produzir outras árvores iguais a ela. Ela é apenas um
veículo da sua própria semente, como nós somos a embalagem da
vida. Entende? A fruta é um estratagema da árvore para proteger a
semente. A fruta é uma etapa, não é o fim. Eu te amo, eu te amo. A
própria fruta, se soubesse a importância que nós lhe damos,
enrubesceria como uma maçã na sua modéstia. Deixa eu só
desengatar o sutiã. A fruta não é nada. O importante é a semente.
E a ânsia, é o ácido, é o que nos traz de pé neste sofá. Digo,
nesta vida. Deixa, deixa. A flor, minha fruta, é um truque da planta
para atrair a abelha. A própria planta é um artifício da semente
para se recriar. A própria semente é apenas a representação
externa daquilo que me trouxe à tona, lembra? A semente da semente,
chega pra cá um pouquinho. Linda, linda. Pense em mim como uma
laranja. Eu só existo para cumprir o destino da semente da semente
da minha semente. Eu estou apenas cumprindo ordens. Você não está
me negando. Você está negando os desígnios do Universo. Deixa.
— Está
bem. Mas só tem uma coisa.
— O
quê?
— Eu
não estou tomando pílula.
— Então
nada feito.
Mais,
mais. Um dia chegaríamos a uma zona erógena além do Sol. Como o
pólen, meu amor, no espaço. Roçaríamos nossas membranas de fibra
de vidro, capacete a capacete, e nossos tubos de oxigênio se
enroscariam e veríamos que era difícil. Eu manipularia a sua
bateria seca e você gemeria como um besouro eletrônico. Asssssiim.
Asssssiiiim.
Um
dia estaríamos velhos. Sexo, só na cabeça. As abelhas andariam a
pé, nada se recriaria, as frutas secariam. Eu afundaria na memória,
de volta às origens do mundo. (O mar tem um deserto no fundo.) Uma
casca morta de semente, por nada, por nada. Mas foi bom, não foi?
Luís
Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça
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