quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Poesia e Polícia

Certa vez na Isla Negra a empregada nos disse: “Senhora, D. Pablo, estou prenha.” Depois teve um menino. Nunca soubemos quem era o pai. A ela não importava. O que lhe importava, isto sim, é que Matilde e eu fôssemos padrinhos da criança. Mas não foi possível, não pudemos. A igreja mais próxima está em El Tabo, uma aldeola sorridente onde pusemos gasolina na camioneta. O padre se eriçou como um porco-espinho. Um padrinho comunista? Jamais! Neruda não entrará por esta porta ainda que leve teu filho nos braços. A empregada voltou para suas vassouras na casa, cabisbaixa. Não compreendia.
Em outra ocasião vi D. Asterio sofrer. É um velho relojoeiro, já bastante idoso e o melhor cronometrista de Valparaíso. Repara todos os cronômetros da Armada. Sua mulher, sua velha companheira de cinquenta anos de casamento, estava morrendo. Achei que devia escrever alguma coisa sobre ele, algo que o consolasse um pouco em tão grande aflição, que ele pudesse ler para sua esposa agonizante. Assim pensei, não sei se tinha razão mas escrevi o poema, pondo nele minha admiração e minha emoção pelo artesão e seu artesanato, por aquela vida tão pura entre todos os tique-taques dos velhos relógios. Sarita Vial o levou ao jornal La Unión, dirigido por um senhor Pascal. O senhor Pascal é sacerdote, não quis publicá-lo; o poema não seria publicado. Neruda, seu autor, é um comunista excomungado. Não quis. Morreu a senhora, a velha companheira de D. Asterio. E o sacerdote não publicou o poema.
Quero viver num mundo sem excomungados. Não excomungarei ninguém. Não diria amanhã a esse sacerdote: “O senhor não pode batizar ninguém porque é anticomunista.” Não diria a outro: “Não publicarei seu poema, sua criação, porque o senhor é anticomunista.” Quero viver num mundo em que os seres sejam somente humanos, sem outros títulos a não ser estes, sem serem golpeados na cabeça com uma régua, com uma palavra, com um rótulo. Quero que se possa entrar em todas as igrejas e em todas as gráficas. Quero que não haja mais ninguém para esperar as pessoas na porta da prefeitura para detê-las e expulsá-las. Quero que todos entrem e saiam do Palácio Municipal sorridentes. Não quero que ninguém fuja de gôndola, que ninguém seja perseguido de motocicleta. Quero que a grande maioria, a única maioria, todos, possam falar, ler, escutar, florescer. Nunca entendi a luta senão para que esta termine. Nunca entendi o rigor senão para que o rigor não exista. Tomei um caminho porque acredito que esse caminho nos leva, a todos, a essa amabilidade duradoura. Luto por essa bondade ubíqua, extensa, inesgotável. De tantos encontros entre minha poesia e a polícia, de todos estes episódios e de outros que não contarei porque me repetiria, e de outros que não me aconteceram mas a muitos que já não poderão contá-los, fica-me no entanto uma fé absoluta no destino humano, uma convicção cada vez mais consciente de que nos aproximamos de uma grande ternura. Escrevo sabendo que sobre nossas cabeças, sobre todas as cabeças, existe o perigo da bomba, da catástrofe nuclear que não deixaria ninguém nem nada sobre a terra. Pois bem, isto não altera minha esperança. Neste minuto crítico, neste pestanejar de agonia, sabemos que entrará a luz definitiva pelos olhos entreabertos. Todos nos entenderemos, progrediremos juntos e esta esperança é irrevogável.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário