Certa
vez na Isla Negra a empregada nos disse: “Senhora, D. Pablo, estou
prenha.” Depois teve um menino. Nunca soubemos quem era o pai. A
ela não importava. O que lhe importava, isto sim, é que Matilde e
eu fôssemos padrinhos da criança. Mas não foi possível, não
pudemos. A igreja mais próxima está em El Tabo, uma aldeola
sorridente onde pusemos gasolina na camioneta. O padre se eriçou
como um porco-espinho. Um padrinho comunista? Jamais! Neruda não
entrará por esta porta ainda que leve teu filho nos braços. A
empregada voltou para suas vassouras na casa, cabisbaixa. Não
compreendia.
Em
outra ocasião vi D. Asterio sofrer. É um velho relojoeiro, já
bastante idoso e o melhor cronometrista de Valparaíso. Repara todos
os cronômetros da Armada. Sua mulher, sua velha companheira de
cinquenta anos de casamento, estava morrendo. Achei que devia
escrever alguma coisa sobre ele, algo que o consolasse um pouco em
tão grande aflição, que ele pudesse ler para sua esposa
agonizante. Assim pensei, não sei se tinha razão mas escrevi o
poema, pondo nele minha admiração e minha emoção pelo artesão e
seu artesanato, por aquela vida tão pura entre todos os tique-taques
dos velhos relógios. Sarita Vial o levou ao jornal La Unión,
dirigido por um senhor Pascal. O senhor Pascal é sacerdote, não
quis publicá-lo; o poema não seria publicado. Neruda, seu autor, é
um comunista excomungado. Não quis. Morreu a senhora, a velha
companheira de D. Asterio. E o sacerdote não publicou o poema.
Quero
viver num mundo sem excomungados. Não excomungarei ninguém. Não
diria amanhã a esse sacerdote: “O senhor não pode batizar ninguém
porque é anticomunista.” Não diria a outro: “Não publicarei
seu poema, sua criação, porque o senhor é anticomunista.” Quero
viver num mundo em que os seres sejam somente humanos, sem outros
títulos a não ser estes, sem serem golpeados na cabeça com uma
régua, com uma palavra, com um rótulo. Quero que se possa entrar em
todas as igrejas e em todas as gráficas. Quero que não haja mais
ninguém para esperar as pessoas na porta da prefeitura para detê-las
e expulsá-las. Quero que todos entrem e saiam do Palácio Municipal
sorridentes. Não quero que ninguém fuja de gôndola, que ninguém
seja perseguido de motocicleta. Quero que a grande maioria, a única
maioria, todos, possam falar, ler, escutar, florescer. Nunca entendi
a luta senão para que esta termine. Nunca entendi o rigor senão
para que o rigor não exista. Tomei um caminho porque acredito que
esse caminho nos leva, a todos, a essa amabilidade duradoura. Luto
por essa bondade ubíqua, extensa, inesgotável. De tantos encontros
entre minha poesia e a polícia, de todos estes episódios e de
outros que não contarei porque me repetiria, e de outros que não me
aconteceram mas a muitos que já não poderão contá-los, fica-me no
entanto uma fé absoluta no destino humano, uma convicção cada vez
mais consciente de que nos aproximamos de uma grande ternura. Escrevo
sabendo que sobre nossas cabeças, sobre todas as cabeças, existe o
perigo da bomba, da catástrofe nuclear que não deixaria ninguém
nem nada sobre a terra. Pois bem, isto não altera minha esperança.
Neste minuto crítico, neste pestanejar de agonia, sabemos que
entrará a luz definitiva pelos olhos entreabertos. Todos nos
entenderemos, progrediremos juntos e esta esperança é irrevogável.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
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