[…]
Perispírito, o perispírito a que Dr. Mota se referia com segurança.
Ninguém pode abraçar um perispírito. Enfim evitava pensamentos:
recorria a um meio de justificar a estranha glorificação.
Nesse
estado, o sono me apavorava. Tinha sido um refúgio. Inficionara-se.
Quando vinham bocejos e as pálpebras esmoreciam, eu saltava da rede,
passeava no escuro, arrimava-me à cômoda. As pernas arrastavam-se à
cama, vergavam. O torpor me agarrava e estendia — e dava-se a
abominação. Laura surgia de novo, não a figurinha transparente: um
ser membrudo e espesso, todo carne e osso. Os braços rijos
seguravam-me, o peito largo caía sobre o meu, achatava-me, e era
inútil qualquer esforço para desprender-me. Eu desejava acordar,
fugir ao pesadelo, restituir à criança as qualidades anteriores: de
algum modo me sentia responsável pela medonha substituição.
Angústia, arrepios. E despertava arquejando, mordendo os beiços, em
desespero. Bicho, bicho monstruoso — e afundava na tristeza, pedia
a morte. As ilusões quebradas, em cacos. Tinha nojo de mim mesmo.
Sujo, precisando água e sabão. Mas isto não me limparia, as
manchas eram indeléveis. Dormir, esquecer a visão poluída. A noite
não acabava, e às vezes a miséria se reproduzia. Terror, depois
lassidão, repugnância.
Levantava-me
cedo, tomava o café, dirigia-me ao Paraíba. Talvez o café me
prejudicasse. Uma extensa lavagem, mergulhos e braçadas. Com certeza
a minha gente perceberia o caso lastimoso. Devia ser efeito do café,
um excitante. Abstive-me dele e bebi chá de folhas de laranja, sem
proveito. Durante o dia ocupava-me em reconstituir penosamente o
ídolo partido. Ao regressar do colégio, ia assistir aos ensaios na
Escola Dramática Pedro Silva.
Não
assistia. Insensível à declamação, esgueirava-me para trás dos
bastidores, emboscava-me a uma janela, observava a cozinha de um
prédio baixo, o quintal, onde floresciam roseiras. Apitos de trens,
barulho de máquinas, carroças estrondeando no calçamento,
numerosos cargueiros, estalos de buranhém. Isso misturava-se ao
drama sanguinoso, em cinco atos e um prólogo, que decorria ali
perto, além da floresta de pano, obra de Joaquim Correntão. O que
me interessava era o jardim. Uma palmeirinha acenava-me de longe,
sacudia-se, fazia-me promessas, que ordinariamente falhavam. Não
obstante o rumor da rua, a tagarelice casada à voz do ponto, idas e
vindas nas tábuas, tudo em redor permanecia deserto. Aferrava-me à
espera inútil. Escurecia; os amadores guardavam as partes, deixavam
o palco; o Pereira da iluminação, de escada ao ombro, subia a
ladeira, ia acender os lampiões; as flores desbotavam; os leques da
palmeirinha despediam-se, quase negros. Espionagem perdida. Bem.
Necessário voltar. No dia seguinte o vulto de Laura surgiria entre
as plantas, como um clarão.
Afinal
houve resmungos: estranharam na Escola Pedro Silva a assiduidade, o
esquisito amor ao teatro, que eu revelava dando as costas à cena, os
cotovelos fincados no peitoril de uma janela. Assustei-me. Iriam
conhecer o meu segredo? Se pudesse abrir-me com alguém, narrar
alegrias e decepções, talvez conseguisse alívio. As confidências
eram impossíveis.
Constantino,
caixeiro novo da loja, autor de letras vulgarizadas no Dilúculo,
reparou no abatimento e aconselhou-me, quis apresentar-me a Otília
da Conceição. Recusei a proposta, vexado. Propriamente não a
recusei: fugi do assunto ignóbil. Ao mesmo tempo achava-me ridículo,
gaguejava, acanhado.
Mas
os horrores noturnos cresciam, as olheiras se aprofundavam e
alargavam na magrém pálida. E o moço renovou o conselho, citou o
Dr. Garnier, ameaçou-me com a loucura. Realmente a obsessão já me
havia endoidecido um pouco.
Tergiversei,
relutei, sucumbi.
Um
dia, ao lusco-fusco, demos um passeio, enveredamos pela Rua da Palha,
entramos numa sala escura. Constantino falou baixo a alguém e
retirou-se. Ao cabo de instantes vi-me num quarto, examinando, sério
e encabulado, fotografias e santos que ornavam a parede, caixas de
pó-de-arroz e frascos expostos na mesa forrada de papel. Otília da
Conceição, à beira da cama, esperava em silêncio. Arriei sobre a
mala pequena e, em silêncio também, comecei a descalçar-me. A
vista se turvou, os dedos tímidos tremeram, o cordão do sapato deu
um nó cego. Esforcei-me por desatá-lo: molhava-se de suor, cada vez
mais se complicava. E o meu desgosto era imenso. Entrei em casa
nauseado, engolindo soluços.
Correram
semanas. Adoeci. A artrite amarrou-me à espreguiçadeira, o meu
desgraçado corpo se cobriu de manchas. Capengando, abri a estante,
exumei O Cortiço, desempacavirei-o, restituí-o à
convivência dos outros romances. Não me inspirava curiosidade. E já
não era objeto de aversão. História razoável, com alguma safadeza
para atrair leitores.
Embrenhava-me
agora em novelas russas. Entrevado, submerso na lona da cadeira,
tentava erguer um braço doído, mexer os dedos, volver as páginas.
A
figura que me perseguia à noite serenou e fugiu. E a outra, nuvem
colorida, evaporou-se.
Graciliano
Ramos, in Infância
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