“Naquela
época os meninos jogavam pião e as meninas bilboquê. Você sabe o
que é isso? Não é o peão do xadrez, é com i, pião. O
pião tem a forma de pera com uma ponta, o sujeito enrola um cordel
em torno dele e depois o aciona desenrolando o cordel com uma manobra
e faz o pião girar no chão. O bilboquê é uma bola de madeira com
um orifício central presa por uma corda numa peça de madeira com
uma ponta. Através do movimento das mãos, esta bola deve ser
encaixada na ponta da peça de madeira. Essas coisas são da época
em que existia a galinha-d’angola e o porco-espinho. Posso ir
embora?”
Ele
saiu. Eu devia ter tomado um copo d’água. Minhas amigas tomam água
sem parar. É comum eu andar pela rua e ver uma mulher carregando uma
garrafinha de água.
Outro
entrou.
“Prefiro
sentar”, ele disse.
“Muito
bem”, eu disse.
Ele
sentou na poltrona e ficou calado.
Eu
podia deixar ele ficar calado ou fazer perguntas.
Deixei-o
ficar calado.
Depois
de algum tempo ele começou a falar.
Ouvi.
“O
que devo fazer? Confesso?”
“Não
é bem uma confissão”, eu disse.
“É
o quê?”
“Uma
revelação.”
“Devo
revelar?”
“A
decisão é sua.”
“O
que o senhor faria?”
“A
decisão é sua.”
“Quando
penso na decisão vejo mais contras que prós.”
Ele
definiu o que chamava de contras e o que chamava de prós.
Ouvi.
“A
decisão é sua”, repeti.
Ele
foi embora.
Então
entrou uma mulher.
Elas
falam muito.
“O
senhor ouviu o que eu disse?”
Então
ouvi ela perguntar “Ouviu o que eu disse?”.
“Sim”,
respondi.
“Eu
ia brigar com ele porque... porque...”
Esperei.
“Nós
não... não... o senhor sabe...”
Eu
não sabia, mas fiquei calado.
“Ele
tem só sessenta anos. Eu tinha ou não tinha que ficar desconfiada?
Ou ele não gostava mais de mim, ou tinha uma amante, ou coisa
parecida. O senhor me arranja um copo d’água?”
Ela
bebeu a água.
“Onde
é que eu estava mesmo? Ah, lembrei. Ele não fazia mais nada comigo
e eu então fiquei muito, muito desconfiada. Mas fui tomar chá com
as minhas amigas na sexta-feira, chá com torradas, nos sentamos na
mesa, somos quatro, e dissemos, hoje vamos comer só uma torrada cada
uma, mas acabamos comendo porcarias, brigadeiro, tortas, e olha que
todas nós estamos acima do peso normal. Onde eu estava mesmo? Ah, no
chá com as amigas. Nesse dia uma de nós comentou que o marido
não... não... o senhor sabe o que estou dizendo. Depois outra
disse, o meu também não, e o marido da outra também não.
Resumindo, nenhum deles... o senhor sabe... nenhum deles. E nesse dia
soube que isso acontecia em todos os casamentos, depois de algum
tempo... sabe como é, depois de algum tempo todos deixam de... sabe
como é...”
Ela
se calou por um momento.
“Então
achei melhor deixar tudo para lá, sabe como é, parece que é assim
mesmo, acontece com todos os casais... os mais antigos... E resolvi
não falar coisa alguma com o meu marido.”
Ela
abriu a bolsa, tirou um espelho, retocou a pintura.
“O
senhor me arranja outro copo d’água?”
A
mulher bebeu a água.
A
mulher foi embora.
O
dia estava encerrado.
Tirei
os sapatos, puxei uma banqueta, coloquei-a na frente da cadeira onde
eu estava sentado, estiquei as pernas, coloquei pé, calcanhar e
panturrilha na banqueta.
Eu
não ia deitar naquele sofá.
Tinha
que tomar um copo d’água.
Rubem
Fonseca, in Histórias curtas
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