sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Ouvir

Naquela época os meninos jogavam pião e as meninas bilboquê. Você sabe o que é isso? Não é o peão do xadrez, é com i, pião. O pião tem a forma de pera com uma ponta, o sujeito enrola um cordel em torno dele e depois o aciona desenrolando o cordel com uma manobra e faz o pião girar no chão. O bilboquê é uma bola de madeira com um orifício central presa por uma corda numa peça de madeira com uma ponta. Através do movimento das mãos, esta bola deve ser encaixada na ponta da peça de madeira. Essas coisas são da época em que existia a galinha-d’angola e o porco-espinho. Posso ir embora?”

Ele saiu. Eu devia ter tomado um copo d’água. Minhas amigas tomam água sem parar. É comum eu andar pela rua e ver uma mulher carregando uma garrafinha de água.

Outro entrou.
Prefiro sentar”, ele disse.
Muito bem”, eu disse.
Ele sentou na poltrona e ficou calado.
Eu podia deixar ele ficar calado ou fazer perguntas.
Deixei-o ficar calado.
Depois de algum tempo ele começou a falar.
Ouvi.
O que devo fazer? Confesso?”
Não é bem uma confissão”, eu disse.
É o quê?”
Uma revelação.”
Devo revelar?”
A decisão é sua.”
O que o senhor faria?”
A decisão é sua.”
Quando penso na decisão vejo mais contras que prós.”
Ele definiu o que chamava de contras e o que chamava de prós.
Ouvi.
A decisão é sua”, repeti.
Ele foi embora.

Então entrou uma mulher.
Elas falam muito.
O senhor ouviu o que eu disse?”
Então ouvi ela perguntar “Ouviu o que eu disse?”.
Sim”, respondi.
Eu ia brigar com ele porque... porque...”
Esperei.
Nós não... não... o senhor sabe...”
Eu não sabia, mas fiquei calado.
Ele tem só sessenta anos. Eu tinha ou não tinha que ficar desconfiada? Ou ele não gostava mais de mim, ou tinha uma amante, ou coisa parecida. O senhor me arranja um copo d’água?”
Ela bebeu a água.
Onde é que eu estava mesmo? Ah, lembrei. Ele não fazia mais nada comigo e eu então fiquei muito, muito desconfiada. Mas fui tomar chá com as minhas amigas na sexta-feira, chá com torradas, nos sentamos na mesa, somos quatro, e dissemos, hoje vamos comer só uma torrada cada uma, mas acabamos comendo porcarias, brigadeiro, tortas, e olha que todas nós estamos acima do peso normal. Onde eu estava mesmo? Ah, no chá com as amigas. Nesse dia uma de nós comentou que o marido não... não... o senhor sabe o que estou dizendo. Depois outra disse, o meu também não, e o marido da outra também não. Resumindo, nenhum deles... o senhor sabe... nenhum deles. E nesse dia soube que isso acontecia em todos os casamentos, depois de algum tempo... sabe como é, depois de algum tempo todos deixam de... sabe como é...”
Ela se calou por um momento.
Então achei melhor deixar tudo para lá, sabe como é, parece que é assim mesmo, acontece com todos os casais... os mais antigos... E resolvi não falar coisa alguma com o meu marido.”
Ela abriu a bolsa, tirou um espelho, retocou a pintura.
O senhor me arranja outro copo d’água?”
A mulher bebeu a água.
A mulher foi embora.
O dia estava encerrado.
Tirei os sapatos, puxei uma banqueta, coloquei-a na frente da cadeira onde eu estava sentado, estiquei as pernas, coloquei pé, calcanhar e panturrilha na banqueta.
Eu não ia deitar naquele sofá.
Tinha que tomar um copo d’água.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

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