domingo, 23 de agosto de 2020

O canto noturno

É noite: falam agora mais alto todas as fontes que jorram. E também minha alma é uma fonte que jorra.
É noite: despertam somente agora todos os cantos dos que amam. E também minha alma é o canto de alguém que ama.
Há em mim algo insaciado, insaciável, que deseja se pronunciar. Uma ânsia de amor se acha em mim, e ela mesma fala a linguagem do amor.
Luz eu sou: ah, quisera eu fosse noite! Mas esta é a minha solidão: estar cingido de luz.
Ah, quisera eu fosse escuro e noturnal! Como desejaria sugar do peito da luz!
E ainda vos desejaria abençoar, pequenos lumes estelares e vaga-lumes lá no alto! — e ser venturoso por vossas dádivas de luz.
Mas eu vivo em minha luz própria, sorvo de volta em mim as chamas que de mim saem.
Não conheço a felicidade de quem recebe; e muitas vezes sonhei que roubar será mais venturoso que receber.
Esta é a minha pobreza: que minha mão jamais descansa de presentear; esta é a minha inveja: ver olhos expectantes e as iluminadas noites do anseio.
Ó desventura dos dadivosos! Ó escurecer do meu sol! Ó ânsia de ansiar! Ó fome na saciedade!
Eles recebem de mim: mas ainda toco sua alma? Há um abismo entre dar e receber; e o menor abismo é o último a se transpor.
Uma fome nasce da minha beleza: gostaria de magoar aqueles que ilumino, de assaltar os que presenteio: — assim tenho fome de maldade.
Retirar a mão quando uma mão já se estende para ela; semelhante à cachoeira, que ainda na queda hesita, — assim tenho fome de maldade.
Tal vingança medita minha plenitude, tal perfídia brota de minha solidão.
Minha ventura ao presentear morreu ao presentear, minha virtude cansou-se de si mesma em seu excesso!
Aquele que costuma presentear, seu perigo é perder o pudor; aquele que costuma repartir, sua mão e seu coração têm calos de repartir.
Meu olho já não lacrimeja ante o pudor dos que pedem; minha mão tornou-se dura demais para sentir o tremor das mãos cheias.
Para onde foram as lágrimas de meus olhos e a penugem de meu coração? Ó solidão dos dadivosos! Ó silêncio dos luminosos!
Muitos sóis circulam nos espaços ermos: para tudo que é escuro falam com sua luz — para mim silenciam.
Oh, esta é a hostilidade da luz ao luminoso: impiedosa percorre ela suas órbitas.
Injusto para com o luminoso no mais fundo de seu coração, frio para com os sóis — assim anda cada sol.
Como uma tempestade voam os sóis em suas órbitas, seguem sua vontade inexorável: esta é a sua frieza.
Ó seres escuros, noturnais, somente vós retirais calor do que é luminoso! Somente vós bebeis bálsamo e leite dos úberes da luz!
Ah, há gelo ao meu redor, minha mão se queima ao tocar no gelado!
Ah, há sede em mim, e ela arde por vossa sede!
É noite: ah, que eu tenha de ser luz! E sede do que é noturno! E solidão!
É noite: como uma nascente agora irrompe meu anseio — falar é meu anseio.
É noite: falam agora mais alto todas as fontes que jorram. E também minha alma é uma fonte que jorra.
É noite: despertam somente agora todos os cantos dos que amam. E também minha alma é o canto de alguém que ama.
Assim cantou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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