Não
sabia que se chamava Xerife a escrivaninha dos meus sonhos. Descobri
agora. Essa escrivaninha de madeira é cheia de gavetinhas e
escaninhos de vários tamanhos e tem uma tampa. Quando você para de
trabalhar, você fecha e ninguém sabe o que se esconde lá dentro.
Não tenho a menor ideia de onde eu possa ter visto uma dessas na
minha cidade, lá no interior do Rio Grande do Sul. O fato é que eu
sempre achei que essa era a única escrivaninha que um escritor
poderia ter. Por causa das gavetinhas e, especialmente, por causa da
tampa.
Explico.
Você está lá, escrevendo, todo escancarado e, de repente, você
fecha. E até chaveia. Seus anjos e principalmente seus demônios
ficam lá dentro, sem risco de se dependurarem no lustre,
esconderem-se em algum lugar onde você não os ache ou mesmo
assombrar o resto da família.
Tive
várias escrivaninhas ao longo da vida, de fórmica à penúltima,
toda modernosa, feita com madeira de demolição. Agora comprei a
última, a minha própria Xerife. Por que só agora? Porque só agora
a mereci.
Decidi
que vou me “enforcar nas cordas da liberdade”. Para isso,
precisava me reinventar com tudo aquilo que já era meu. Para marcar
esse ato, queria transformar algo da matéria volátil dos sonhos em
existência concreta. A escrivaninha dos devaneios da minha infância
materializou-se, com tudo de incontrolável que existe quando nos
arriscamos a desentocar os sonhos — com uma vara que é sempre meio
curta — e os expomos aos percalços do real.
Foi
um ato de profundo simbolismo para mim, que adoro rituais de
passagem. Um dia antes da compra, deixei a redação da revista
Época, depois de dez anos. Poderia continuar ali por mais 20
(se continuassem me querendo, claro), mas achei que estava na hora de
criar uma nova vida pra mim. Deixei Porto Alegre e a redação do
jornal Zero Hora, onde trabalhei por 11 anos, em janeiro de
2000, para ir para São Paulo e para a Época. Não porque
estava desconfortável lá, mas porque estava confortável demais. Me
perguntavam então por que eu deixaria tanto para ir para uma cidade
demasiado grande, demasiado tudo. Eu respondia: estou indo porque não
quero saber como serão os meus dias daqui a cinco, dez anos.
E fui.
Nessa
última década fiz reportagens que transformaram a minha vida (e,
espero, algumas outras), perambulei por Amazônias desconcertantes
(elas são várias e sempre escapam), viajei pelas muitas periferias
de São Paulo e de outras cidades (não há dois becos iguais) e
testemunhei pequenos grandes milagres de gente. Hoje, sou povoada
pelos homens e mulheres extraordinários que escutei como repórter.
E agora tudo o que vivi dará sentido ao que virá.
Entre
2008 e 2010, trabalhei com a questão da morte na reportagem. Não a
morte violenta, que em geral é o tema da imprensa, mas a morte que a
maioria de nós terá, por doença e por velhice. E que, por ser a
morte da maioria, é silenciada. Encarar o rosto da morte era desatar
o nó que ainda me impedia de viver uma vida mais viva. Desde
pequena, eu tenho essa característica. Quando tenho medo de alguma
coisa, vou lá e faço. Quase perdi algumas partes do corpo por causa
disso. E certamente perdi algumas porções invisíveis de mim.
Ao
fazer a principal reportagem dessa série, quando acompanhei uma
pessoa com câncer nos últimos 115 dias de sua vida, perdi um naco
da minha alma de supetão. Levou bastante tempo para o sangue
estancar. Mas um dos meus muitos apelidos é “Tixa”, de
“lagartixa”. Há quem faça fantasias sobre a origem dele. É bem
menos picante. Passei a vida deixando a cauda em sustos pelas
esquinas de mundo. Sempre acabo me regenerando, ainda que leve tempo.
Todos somos lagartixas em alguma medida, eu apenas abuso um pouco
dessa vantagem evolutiva.
Minhas
incursões no universo da morte me deram maior clareza sobre a
natureza da vida. Algumas pessoas comentavam que eu devia ter algum
problema para ser tão mórbida. Bobagem. Morbidez é outra coisa.
Não se fala da morte por causa da morte, mas por causa da vida.
Lidar bem com a certeza que todos temos de morrer um dia é
fundamental para viver melhor. E para alcançar a matéria fugaz dos
nossos dias.
A
vida rugiu com mais força dentro de mim depois de experimentar
também os limites da reportagem. Fiz uns cálculos e descobri que
preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro — e eu
quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como já disse mais
de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na
hora de comprar minha escrivaninha Xerife e mudar de cenário.
Tenho
todos os medos em mim, menos o medo de ter medo. Prefiro fazer as
coisas do meu jeito e cometer meus próprios erros. Tanto quanto os
acertos, os erros também devem nos pertencer. Temos uma vida só,
mas, dentro dessa, podemos viver muitas. E eu quero todas as minhas.
Vou
continuar fazendo reportagem. Apenas de um outro jeito, num outro
tempo. Sou repórter até os confins de mim — e um pouco além. Se
conseguir escrever ficção, como também sonho, só será possível
pelo tanto de vida real e pessoas de carne, osso e cicatrizes, muitas
cicatrizes, que conheci nessas mais de duas décadas de reportagem.
Só o real é absurdo. A ficção é sempre possível.
Essa
vida que começa hoje vem sendo construída há muito, mas só no
final de 2009 descobri que a hora era agora. Não sei como foi. Nem
se houve um momento exato. Lembro-me de dois pequenos episódios
apenas. Num deles, eu corria para algum lugar com o João quando ele
interrompeu meu passo marcial e disse: “Olha”. Eu olhei e nada
vi. Até que, com a ajuda dele, localizei uma flor minúscula no meio
do concreto. Nós nos acocoramos e ficamos olhando o tanto de
detalhes que ela tinha. Como era especial e linda e única. O João
costuma se esquecer das importâncias para passar intermináveis
minutos vendo a forma de uma flor ou de uma nuvem ou de uma fatia de
bolo de chocolate. Somos tudo o que somos. Mas as pessoas que amamos
exacerbam algumas partes de nós, para o bem e para o mal. E o João
tem esse efeito sobre mim, de me tornar melhor do que sou. Por um
momento eu quase fui blasé e disse algo como: “Essa flor no
concreto é um clichê”. (Como seria um clichê essa imagem neste
texto.) Então lembrei que não sou blasé . E percebi que corria
tanto para fazer as tantas coisas paralelas que tinha inventado, que
estava esquecendo daquilo que sempre deu sentido à minha reportagem,
à minha vida: estava me esquecendo de olhar de verdade, olhar para
ver.
O
outro episódio aconteceu no último verão. Eu estava com os meus
pais na casa de praia que eles alugam a cada janeiro. E fiquei
olhando pra eles. Me dava enorme prazer ver os dois se mexendo.
Observar o jeito que cada um funcionava com relação a si mesmo e
naquele casamento tão amoroso. (Eles andam de mãos dadas depois de
56 anos de casados, e o pai dá flores pra mãe no aniversário de
“conhecimento”.) Num certo momento, fiquei olhando para o cabelo
da mãe, o cabelo do pai, o jeito que o vento batia neles. E descobri
que não podia mais continuar numa vida em que eu não tivesse tempo
para olhar o cabelo deles se mexendo com o vento.
Quando
voltei pra São Paulo, soube que tinha chegado a hora de ir embora.
Não da cidade, mas de um certo jeito de estar no mundo. E agora lá
vou eu. Não sei bem pra onde, mas sei que é pra mais perto de mim.
Comecei
então a procurar minha escrivaninha. Entrei no Mercado Livre, o site
da internet que vende tudo, e coloquei na busca: “escrivaninha
antiga”. E aí veio de todo jeito e de toda época, com pés
palitos, forma de bambolê, e também a minha, que descobri que se
chama Xerife. Havia vários exemplares, mas gostei particularmente de
duas. Uma era do Rio de Janeiro, o frete seria caro. A outra morava
em São Paulo. Apostei nesta. O dono me deixou dar uma olhada nela
antes de comprar. E lá fui eu com o João num galpão da Barra
Funda.
Era
uma escrivaninha viva. Olhei pra ela, ela olhou pra mim, e eu soube
que era a “minha”. Como na história do Harry Potter, em que é a
varinha mágica que escolhe o bruxo — e só há uma varinha, única
e singular, para cada bruxo —, a minha escrivaninha era assim,
minha. Nasceu antes de mim e pertenceu a outros donos porque
precisava me esperar.
Examinamos
ela inteira. E descobrimos que tinha mais cicatrizes do que nos
prometeram. E alguns hóspedes indesejados. Numa das gavetinhas,
havia um ninho de cupins. Nas costas, ela tinha sido quebrada em
algum episódio de violência ou mau humor. Mas eu nunca fui uma boa
negociante. As coisas práticas não têm muito efeito sobre mim. A
escrivaninha também me receberia com mais rugas e feridas fechadas e
abertas do que talvez esperasse. Nenhuma de nós nasceu ontem. Ambas
queríamos — e precisávamos — nascer de novo.
Aceitei
as cicatrizes da minha escrivaninha como parte da história de sua
vida antes de mim. E fechei o negócio. Ela queria ir embora pra casa
comigo já, eu senti isso. Mas eu ainda precisava fazer o depósito e
acertar o frete. Enquanto isso, o vendedor providenciaria um
exterminador de cupins. Ao contar para a Maíra, minha filha, sobre a
escrivaninha, eu dizia, toda empolgada: “Ela tem cupins, mas também
tem uma alma dentro dela!”. Com seu senso de humor peculiar, Maíra
aconselhou: “Se tem alma, não leva pra casa!”.
O
problema é que eu tenho um fraco por almas. Venho de uma família de
mulheres que falam com os fantasmas que vagam pela casa com a maior
sem-cerimônia. Dava até pena do meu tio-avô, um homenzinho pequeno
que passou a vida inventando objetos mirabolantes e deu a si mesmo um
nome de passarinho. Quando ele arrastava os chinelos pelo assoalho,
era despachado pela sua viúva: “Vai-te embora, Graúna, já disse
que não te quero aqui!”. Para ele, a morte não mudou nada. A
mulher continuava mandando em seu melancólico espectro.
Hoje
é o primeiro dia da minha nova vida. Tenho que fazer um rearranjo
completo na minha cabeça programada em mais de duas décadas de vida
de funcionária. Não sigo mais uma lógica de segunda a sexta. Posso
escrever às 6h da manhã de domingo, como faço agora. E ir ao
cinema no meio da tarde de segunda-feira, como pretendo. Minha semana
não terá mais finais e começos. Posso ficar acordada à noite e
dormir de dia. Posso almoçar à meia-noite e tomar café ao
meio-dia. Posso apenas ouvir a chuva batendo no telhado (ainda que
meu telhado seja o apartamento do vizinho). Posso permanecer olhando
para o teto por horas (eu gosto muito de olhar pro teto).
O
tempo é meu. Essa é a grande mudança. Vou perder dinheiro,
segurança, carteira assinada, benefícios, férias remuneradas,
décimo-terceiro. Em troca, retomo a posse do meu tempo. Me preparei
para viver com pouco. Criei minha filha, comprei apartamento, não
tenho dívidas. Só tenho agora que manter o meu corpinho. E ele é
bem barato. Três pratos de feijão o deixam todo faceiro.
Mantenho
essa coluna exatamente aqui onde está. Ela faz parte do meu projeto
de liberdade. Queria muito continuar, não sabia se queriam que eu
continuasse. Quiseram. Sou grata por isso. Então, toda segunda-feira
estarei aqui, como sempre, logo de manhã, para pensarmos juntos
sobre essa confusão que é a vida do mundo e também a nossa.
Agora,
vou abrir minha escrivaninha Xerife. Vamos ver o que conseguimos
fazer juntas…
Eliane
Brum, in A
Menina Quebrada
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