domingo, 23 de agosto de 2020

Escrivaninha Xerife

Não sabia que se chamava Xerife a escrivaninha dos meus sonhos. Descobri agora. Essa escrivaninha de madeira é cheia de gavetinhas e escaninhos de vários tamanhos e tem uma tampa. Quando você para de trabalhar, você fecha e ninguém sabe o que se esconde lá dentro. Não tenho a menor ideia de onde eu possa ter visto uma dessas na minha cidade, lá no interior do Rio Grande do Sul. O fato é que eu sempre achei que essa era a única escrivaninha que um escritor poderia ter. Por causa das gavetinhas e, especialmente, por causa da tampa.
Explico. Você está lá, escrevendo, todo escancarado e, de repente, você fecha. E até chaveia. Seus anjos e principalmente seus demônios ficam lá dentro, sem risco de se dependurarem no lustre, esconderem-se em algum lugar onde você não os ache ou mesmo assombrar o resto da família.
Tive várias escrivaninhas ao longo da vida, de fórmica à penúltima, toda modernosa, feita com madeira de demolição. Agora comprei a última, a minha própria Xerife. Por que só agora? Porque só agora a mereci.
Decidi que vou me “enforcar nas cordas da liberdade”. Para isso, precisava me reinventar com tudo aquilo que já era meu. Para marcar esse ato, queria transformar algo da matéria volátil dos sonhos em existência concreta. A escrivaninha dos devaneios da minha infância materializou-se, com tudo de incontrolável que existe quando nos arriscamos a desentocar os sonhos — com uma vara que é sempre meio curta — e os expomos aos percalços do real.
Foi um ato de profundo simbolismo para mim, que adoro rituais de passagem. Um dia antes da compra, deixei a redação da revista Época, depois de dez anos. Poderia continuar ali por mais 20 (se continuassem me querendo, claro), mas achei que estava na hora de criar uma nova vida pra mim. Deixei Porto Alegre e a redação do jornal Zero Hora, onde trabalhei por 11 anos, em janeiro de 2000, para ir para São Paulo e para a Época. Não porque estava desconfortável lá, mas porque estava confortável demais. Me perguntavam então por que eu deixaria tanto para ir para uma cidade demasiado grande, demasiado tudo. Eu respondia: estou indo porque não quero saber como serão os meus dias daqui a cinco, dez anos. E fui.
Nessa última década fiz reportagens que transformaram a minha vida (e, espero, algumas outras), perambulei por Amazônias desconcertantes (elas são várias e sempre escapam), viajei pelas muitas periferias de São Paulo e de outras cidades (não há dois becos iguais) e testemunhei pequenos grandes milagres de gente. Hoje, sou povoada pelos homens e mulheres extraordinários que escutei como repórter. E agora tudo o que vivi dará sentido ao que virá.
Entre 2008 e 2010, trabalhei com a questão da morte na reportagem. Não a morte violenta, que em geral é o tema da imprensa, mas a morte que a maioria de nós terá, por doença e por velhice. E que, por ser a morte da maioria, é silenciada. Encarar o rosto da morte era desatar o nó que ainda me impedia de viver uma vida mais viva. Desde pequena, eu tenho essa característica. Quando tenho medo de alguma coisa, vou lá e faço. Quase perdi algumas partes do corpo por causa disso. E certamente perdi algumas porções invisíveis de mim.
Ao fazer a principal reportagem dessa série, quando acompanhei uma pessoa com câncer nos últimos 115 dias de sua vida, perdi um naco da minha alma de supetão. Levou bastante tempo para o sangue estancar. Mas um dos meus muitos apelidos é “Tixa”, de “lagartixa”. Há quem faça fantasias sobre a origem dele. É bem menos picante. Passei a vida deixando a cauda em sustos pelas esquinas de mundo. Sempre acabo me regenerando, ainda que leve tempo. Todos somos lagartixas em alguma medida, eu apenas abuso um pouco dessa vantagem evolutiva.
Minhas incursões no universo da morte me deram maior clareza sobre a natureza da vida. Algumas pessoas comentavam que eu devia ter algum problema para ser tão mórbida. Bobagem. Morbidez é outra coisa. Não se fala da morte por causa da morte, mas por causa da vida. Lidar bem com a certeza que todos temos de morrer um dia é fundamental para viver melhor. E para alcançar a matéria fugaz dos nossos dias.
A vida rugiu com mais força dentro de mim depois de experimentar também os limites da reportagem. Fiz uns cálculos e descobri que preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro — e eu quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como já disse mais de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na hora de comprar minha escrivaninha Xerife e mudar de cenário.
Tenho todos os medos em mim, menos o medo de ter medo. Prefiro fazer as coisas do meu jeito e cometer meus próprios erros. Tanto quanto os acertos, os erros também devem nos pertencer. Temos uma vida só, mas, dentro dessa, podemos viver muitas. E eu quero todas as minhas.
Vou continuar fazendo reportagem. Apenas de um outro jeito, num outro tempo. Sou repórter até os confins de mim — e um pouco além. Se conseguir escrever ficção, como também sonho, só será possível pelo tanto de vida real e pessoas de carne, osso e cicatrizes, muitas cicatrizes, que conheci nessas mais de duas décadas de reportagem. Só o real é absurdo. A ficção é sempre possível.
Essa vida que começa hoje vem sendo construída há muito, mas só no final de 2009 descobri que a hora era agora. Não sei como foi. Nem se houve um momento exato. Lembro-me de dois pequenos episódios apenas. Num deles, eu corria para algum lugar com o João quando ele interrompeu meu passo marcial e disse: “Olha”. Eu olhei e nada vi. Até que, com a ajuda dele, localizei uma flor minúscula no meio do concreto. Nós nos acocoramos e ficamos olhando o tanto de detalhes que ela tinha. Como era especial e linda e única. O João costuma se esquecer das importâncias para passar intermináveis minutos vendo a forma de uma flor ou de uma nuvem ou de uma fatia de bolo de chocolate. Somos tudo o que somos. Mas as pessoas que amamos exacerbam algumas partes de nós, para o bem e para o mal. E o João tem esse efeito sobre mim, de me tornar melhor do que sou. Por um momento eu quase fui blasé e disse algo como: “Essa flor no concreto é um clichê”. (Como seria um clichê essa imagem neste texto.) Então lembrei que não sou blasé . E percebi que corria tanto para fazer as tantas coisas paralelas que tinha inventado, que estava esquecendo daquilo que sempre deu sentido à minha reportagem, à minha vida: estava me esquecendo de olhar de verdade, olhar para ver.
O outro episódio aconteceu no último verão. Eu estava com os meus pais na casa de praia que eles alugam a cada janeiro. E fiquei olhando pra eles. Me dava enorme prazer ver os dois se mexendo. Observar o jeito que cada um funcionava com relação a si mesmo e naquele casamento tão amoroso. (Eles andam de mãos dadas depois de 56 anos de casados, e o pai dá flores pra mãe no aniversário de “conhecimento”.) Num certo momento, fiquei olhando para o cabelo da mãe, o cabelo do pai, o jeito que o vento batia neles. E descobri que não podia mais continuar numa vida em que eu não tivesse tempo para olhar o cabelo deles se mexendo com o vento.
Quando voltei pra São Paulo, soube que tinha chegado a hora de ir embora. Não da cidade, mas de um certo jeito de estar no mundo. E agora lá vou eu. Não sei bem pra onde, mas sei que é pra mais perto de mim.
Comecei então a procurar minha escrivaninha. Entrei no Mercado Livre, o site da internet que vende tudo, e coloquei na busca: “escrivaninha antiga”. E aí veio de todo jeito e de toda época, com pés palitos, forma de bambolê, e também a minha, que descobri que se chama Xerife. Havia vários exemplares, mas gostei particularmente de duas. Uma era do Rio de Janeiro, o frete seria caro. A outra morava em São Paulo. Apostei nesta. O dono me deixou dar uma olhada nela antes de comprar. E lá fui eu com o João num galpão da Barra Funda.
Era uma escrivaninha viva. Olhei pra ela, ela olhou pra mim, e eu soube que era a “minha”. Como na história do Harry Potter, em que é a varinha mágica que escolhe o bruxo — e só há uma varinha, única e singular, para cada bruxo —, a minha escrivaninha era assim, minha. Nasceu antes de mim e pertenceu a outros donos porque precisava me esperar.
Examinamos ela inteira. E descobrimos que tinha mais cicatrizes do que nos prometeram. E alguns hóspedes indesejados. Numa das gavetinhas, havia um ninho de cupins. Nas costas, ela tinha sido quebrada em algum episódio de violência ou mau humor. Mas eu nunca fui uma boa negociante. As coisas práticas não têm muito efeito sobre mim. A escrivaninha também me receberia com mais rugas e feridas fechadas e abertas do que talvez esperasse. Nenhuma de nós nasceu ontem. Ambas queríamos — e precisávamos — nascer de novo.
Aceitei as cicatrizes da minha escrivaninha como parte da história de sua vida antes de mim. E fechei o negócio. Ela queria ir embora pra casa comigo já, eu senti isso. Mas eu ainda precisava fazer o depósito e acertar o frete. Enquanto isso, o vendedor providenciaria um exterminador de cupins. Ao contar para a Maíra, minha filha, sobre a escrivaninha, eu dizia, toda empolgada: “Ela tem cupins, mas também tem uma alma dentro dela!”. Com seu senso de humor peculiar, Maíra aconselhou: “Se tem alma, não leva pra casa!”.
O problema é que eu tenho um fraco por almas. Venho de uma família de mulheres que falam com os fantasmas que vagam pela casa com a maior sem-cerimônia. Dava até pena do meu tio-avô, um homenzinho pequeno que passou a vida inventando objetos mirabolantes e deu a si mesmo um nome de passarinho. Quando ele arrastava os chinelos pelo assoalho, era despachado pela sua viúva: “Vai-te embora, Graúna, já disse que não te quero aqui!”. Para ele, a morte não mudou nada. A mulher continuava mandando em seu melancólico espectro.
Hoje é o primeiro dia da minha nova vida. Tenho que fazer um rearranjo completo na minha cabeça programada em mais de duas décadas de vida de funcionária. Não sigo mais uma lógica de segunda a sexta. Posso escrever às 6h da manhã de domingo, como faço agora. E ir ao cinema no meio da tarde de segunda-feira, como pretendo. Minha semana não terá mais finais e começos. Posso ficar acordada à noite e dormir de dia. Posso almoçar à meia-noite e tomar café ao meio-dia. Posso apenas ouvir a chuva batendo no telhado (ainda que meu telhado seja o apartamento do vizinho). Posso permanecer olhando para o teto por horas (eu gosto muito de olhar pro teto).
O tempo é meu. Essa é a grande mudança. Vou perder dinheiro, segurança, carteira assinada, benefícios, férias remuneradas, décimo-terceiro. Em troca, retomo a posse do meu tempo. Me preparei para viver com pouco. Criei minha filha, comprei apartamento, não tenho dívidas. Só tenho agora que manter o meu corpinho. E ele é bem barato. Três pratos de feijão o deixam todo faceiro.
Mantenho essa coluna exatamente aqui onde está. Ela faz parte do meu projeto de liberdade. Queria muito continuar, não sabia se queriam que eu continuasse. Quiseram. Sou grata por isso. Então, toda segunda-feira estarei aqui, como sempre, logo de manhã, para pensarmos juntos sobre essa confusão que é a vida do mundo e também a nossa.
Agora, vou abrir minha escrivaninha Xerife. Vamos ver o que conseguimos fazer juntas…
Eliane Brum, in A Menina Quebrada

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