domingo, 9 de agosto de 2020

Dos sábios famosos

Servistes ao povo e à superstição do povo, sábios famosos — e não à verdade! E justamente por isso fostes venerados.
E também por isso foi tolerada vossa descrença, porque era uma graça e um rodeio para chegar ao povo. Desse modo o senhor deixa os escravos à vontade e até se deleita com sua petulância.
Mas aquele odiado pelo povo como um lobo pelos cães é o espírito livre, o inimigo dos grilhões, o não adorador, o que habita as florestas.
Caçá-lo de seu refúgio — isto sempre foi, para o povo, “senso de justiça”: contra ele sempre açula os cães de dentes mais afiados.
Pois a verdade está aqui — não está aqui o povo? Ai daqueles que procuram!” — é o que se diz desde sempre.
Queríeis justificar vosso povo em sua veneração: a isso chamastes “vontade de verdade”, ó sábios famosos!
E vosso coração sempre falou a si mesmo: “Eu vim do povo; de lá também me veio a voz de Deus”.
Teimosos e prudentes como o asno, assim sempre fostes, como advogados do povo.
E mais de um poderoso, que queria andar bem com o povo, atrelou diante de seus cavalos — um pequeno asno, um sábio famoso.
E agora eu gostaria, ó sábios famosos, que afinal despísseis inteiramente a pele de leão!
A pele do animal de rapina, sarapintada, e a juba daquele que busca, explora, conquista!
Ah, para que eu chegue a acreditar em vossa “veracidade”, deveis primeiramente partir vossa vontade veneradora.
Veraz — assim chamo àquele que vai para desertos sem deuses e que partiu seu coração venerador.
Na areia amarela e queimado do sol, olha de soslaio, sedento, para as ilhas ricas em fontes, onde seres vivos descansam sob árvores escuras.
Mas sua sede não o convence a se tornar como esses confortáveis: pois onde há oásis há também imagens de ídolos.
Faminta, violenta, solitária, sem deus: assim quer a si mesma a vontade leonina.
Livre da felicidade do servo, redimida de deuses e adorações, destemida e temível, grande e solitária: assim é a vontade do veraz.
No deserto moraram desde sempre os verazes, os espíritos livres, como senhores do deserto; mas nas cidades moram os bem nutridos, famosos sábios — os animais de tiro.
Pois sempre puxam, como asnos — a carroça do povo!
Não que eu me irrite com eles por isso: mas para mim continuam servidores e arreados, ainda que resplendam com arreios de outro.
E muitas vezes foram bons serventes, dignos de louvor. Pois assim fala a virtude: “Se tens de servir, procura aquele a quem sejas mais útil!
O espírito e a virtude de teu senhor devem crescer pelo fato de o servires: assim, tu mesmo crescerás com seu espírito e sua virtude!”
E, em verdade, ó sábios famosos, ó serventes do povo! Vós mesmos crescestes com o espírito e a virtude do povo — e o povo, através de vós! Em vossa honra o digo!
Mas permaneceis povo também em vossas virtudes, povo com olhos fracos — povo que não sabe o que é espírito!
Espírito é a vida que corta na própria vida: no próprio sofrimento aumenta o próprio saber — sabíeis isso?
E a felicidade do espírito é esta: ser ungido e consagrado vítima de sacrifício com lágrimas — sabíeis isso?
E a cegueira do cego e seu buscar e tatear deverão testemunhar o poder do sol para o qual ele olhou — sabíeis isso?
E com as montanhas o homem do conhecimento deve aprender a construir! É pouco que o espírito mova montanhas — sabíeis isso?
Conheceis apenas as centelhas do espírito: mas não vedes a bigorna que ele é, nem a crueldade do seu martelo!
Em verdade, não conheceis o orgulho do espírito! E menos ainda suportaríeis a modéstia do espírito, se ela um dia quisesse falar!
E jamais pudestes lançar vosso espírito num fosso de neve: não sois quentes o bastante para isso! Assim, não conheceis tampouco os êxtases de sua frieza.
Em tudo, porém, agis com excessiva familiaridade com o espírito; e muitas vezes fizestes da sabedoria um abrigo e hospital para poetas ruins.
Não sois águias; assim, tampouco experimentastes a felicidade que há no terror do espírito. E quem não é pássaro não deve permanecer sobre os abismos.
Vós me pareceis mornos: mas todo conhecimento profundo corre frio. São gélidas as mais íntimas fontes do espírito: bálsamos para mãos quentes e para os que agem com ardor.
Aí estais, honrados, tesos e aprumados, ó sábios famosos! — não vos impele nenhum forte vento e vontade.
Não vistes jamais uma vela sobre o mar, redonda, inflada e tremendo à impetuosidade do vento?
Semelhante à vela, tremendo à impetuosidade do vento, vai minha sabedoria sobre o mar — minha selvagem sabedoria!
Mas vós, serventes do povo, vós, sábios famosos, — como poderíeis ir junto comigo? —
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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