Amanheci
em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas
estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o
amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos
alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir
é um dom que o mundo não merece. E nem ao menos posso fazer o que
uma menina semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não
sou semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos todos
semiparalíticos. E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior
– vive-se, sem ao menos uma explicação. E ter empregadas,
chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade. E ter
a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por
que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo na rua
com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que
fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque eu
escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever? Avisei a meus
filhos que amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu
quero ligar. Quereria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse
com o tendão tenso que sustenta meu coração.
E
os que desistem? Conheço uma mulher que desistiu. E vive
razoavelmente bem: o sistema que arranjou para viver é ocupar-se.
Nenhuma ocupação lhe agrada. Nada do que eu já fiz me agrada. E o
que eu fiz com amor estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu
sabia. E criaram o Dia dos Analfabetos. Só li a manchete, recusei-me
a ler o texto. Recuso-me a ler o texto do mundo, as manchetes já me
deixam em cólera. E comemora-se muito. E guerreia-se o tempo todo.
Todo um mundo de semiparalíticos. E espera-se inutilmente o milagre.
E quem não espera o milagre está ainda pior, ainda mais jarros
precisaria quebrar. E as igrejas estão cheias dos que temem a cólera
de Deus. E dos que pedem a graça, que seria o contrário da cólera.
Não,
não tenho pena dos que morrem de fome. A ira é o que me toma. E
acho certo roubar para comer. – Acabo de ser interrompida pelo
telefonema de uma moça chamada Teresa que ficou muito contente de eu
me lembrar dela. Lembro-me: era uma desconhecida, que um dia apareceu
no hospital, durante os quase três meses onde passei para me salvar
do incêndio. Ela se sentara, ficara um pouco calada, falara um
pouco. Depois fora embora. E agora me telefonou para ser franca: que
eu não escreva no jornal nada de crônicas ou coisa parecida. Que
ela e muitos querem que eu seja eu própria, mesmo que remunerada
para isso. Que muitos têm acesso a meus livros e que me querem como
sou no jornal mesmo. Eu disse que sim, em parte porque também
gostaria que fosse sim, em parte para mostrar a Teresa, que não me
parece semiparalítica, que ainda se pode dizer sim.
Sim,
meu Deus. Que se possa dizer sim. No entanto neste mesmo momento
alguma coisa estranha aconteceu. Estou escrevendo de manhã e o tempo
de repente escureceu de tal forma que foi preciso acender as luzes. E
outro telefonema veio: de uma amiga perguntando-me espantada se aqui
também tinha escurecido. Sim, aqui é noite escura às dez horas da
manhã. É a ira de Deus. E se essa escuridão se transformar em
chuva, que volte o dilúvio, mas sem a arca, nós que não soubemos
fazer um mundo onde viver e não sabemos na nossa paralisia como
viver. Porque se não voltar o dilúvio, voltarão Sodoma e Gomorra,
que era a solução. Por que deixar entrar na arca um par de cada
espécie? Pelo menos o par humano não tem dado senão filhos, mas
não a outra vida, aquela que, não existindo, me fez amanhecer em
cólera.
Teresa,
quando você me visitou no hospital, viu-me toda enfaixada e
imobilizada. Hoje você me veria mais imobilizada ainda. Hoje sou a
paralítica e a muda. E se tento falar, sai um rugido de tristeza.
Então não é cólera apenas? Não, é tristeza também.
Clarice
Lispector, in Todas as crônicas
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