Era
M.
“Você
sumiu”, disse M. “Deixou de...”
“Comprei
um sítio na Serra com duas nascentes dentro da propriedade e agora
estou criando rãs.”
“Criando
rãs? Aquela espécie de sapo?”
“São
muito diferentes. Os sapos preferem viver em terra firme e só
procuram locais aquáticos quando vão se reproduzir. As rãs...”
“Você
cria essa coisa pra quê?”
“Para
vender.”
“Quem
compra?”
“Restaurantes,
açougues... É um alimento muito procurado, por pessoas
sofisticadas, evidentemente.”
“Caramba.
Tem gente que come essa merda?”
“É
uma delícia.”
“Você
come?”
“Como,
grelhada.”
“Cara,
não estou te reconhecendo. Você largou o trabalho para fazer isso?”
“Eu
não gostava do que fazia.”
“Qual
o problema? A grana não era boa?”
“Eu
não gostava.”
“Você
sempre dizia que só despachava gente que merecia ir para o inferno.”
“É
difícil de explicar. O cara merece ir para o inferno, mas não sou
eu que devo fazer isso, entendeu?”
“Me
lembro, nas poucas vezes em que trabalhamos juntos, que você dizia
‘em gente inocente não se dá um peteleco’.”
“Claro,
gente inocente tem que ser protegida.”
“Você
gostava de fazer o serviço sozinho.”
“É
verdade. Não gostava de ficar de olho no parceiro.”
“Você
ficava de olho no parceiro?”
“Ficava.
Para ele não fazer besteira. Você tinha a mania de bater nas
pessoas que moravam na casa do sujeito que íamos despachar. Bater na
empregada? Eu não deixava. Bater em criança?”
“Você
não deixava, eu sei, você não deixava. Lembra daquele cara que
fomos despachar no Leblon?”
“Vagamente.
Estou tentando esquecer...”
“Tinha
uma menina, de uns oito anos, que caiu da janela.”
“Lembro,
lembro, ela chorava muito.”
“Quer
saber de uma coisa?”
“O
quê?”
“Ela
não caiu da janela.”
“Como
assim?”
“Eu
joguei ela lá de cima, numa hora que você estava distraído.”
“Jogou
a menininha lá de cima?”
“A
pirralha se esborrachou na calçada. Gostei de fazer aquilo.”
Fiquei
um tempo calado, ruminando.
“Eu
moro neste prédio. Décimo andar. Não quer subir para tomar um
drinque?”, perguntei.
“Um
uísque? Grande ideia, cara, vamos logo. Este prédio é antigo? Não
tem nem porteiro.”
“É
muito antigo.”
Subimos.
“Você
mora sozinho?”
“Moro.”
“Apartamento
velho mas bacana”, disse M. assim que entramos.
“Você
precisa ver a vista. A praia, o mar.”
Levei-o
até a varanda.
“Dá
uma olhada”, eu disse.
M.
era leve. Peguei-o pelas pernas e joguei-o para fora da varanda, para
ele se esborrachar lá embaixo.
Ele
merecia ir para o inferno. Mas aquela era a última vez que eu ia
bancar... Deus? O Diabo? Meu negócio era criar rãs.
Rubem
Fonseca, in Histórias curtas
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