segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A morte de Nana

[…] Mariam chorava deitada no banco. Não quis se sentar para que ninguém a visse. Imaginava que, hoje de manhã, toda Herat já estaria sabendo a que ponto ela tinha se rebaixado. Adoraria que o mulá Faizullah estivesse ali, para poder deitar a cabeça no seu colo e deixar que ele a consolasse.
Depois de algum tempo, o chão foi ficando mais irregular e o capo do carro, mais empinado. Tinham chegado à estradinha que subia de Herat ate Gul Daman.
Mariam se perguntava o que diria a Nana. Como poderia lhe pedir desculpas? Como teria coragem de encará-la agora?
O carro parou e o motorista veio ajudá-la a saltar.
Vou com você ate lá — disse ele.
A menina se deixou levar pela estrada e, depois, pela trilha. Havia madressilvas pelo caminho, e asclépias também. As abelhas zumbiam em meio as flores silvestres reluzentes. O motorista lhe deu a mão para ajudá-la a atravessar o riacho. Depois, a soltou novamente. Estava dizendo que os célebres ventos dos 120 dias logo estariam chegando, soprando desde o meio da manhã até o anoitecer; que os mosquitos iam entrar naquele seu frenesi alimentar, mas, de repente, parou diante dela, tentando tapar os seus olhos, empurrando-a para o lado de onde tinham vindo e exclamando:
Volte! Não! Não olhe agora. Vire-se! Volte!
Mas foi em vão. Mariam viu assim mesmo. Uma rajada de vento afastou as folhagens do salgueiro-chorão, como se abrisse uma cortina, e a menina avistou de relance o que estava do outro lado: a cadeira de encosto alto, caída no chão. A corda pendendo de um ramo mais alto. E Nana pendurada na outra ponta.

Nana foi enterrada num canto do cemitério de Gul Daman. Mariam ficou perto de Bibi jo, junto com as mulheres, enquanto o mulá Faizullah recitava preces ao lado do túmulo e os homens baixavam aquele corpo amortalhado a sepultura.
Depois, Jalil a levou até a kolba onde, diante dos aldeões que os acompanhavam, fez uma grande exibição de cuidado para com a filha. Recolheu alguns dos seus pertences e guardou tudo numa valise. Sentou junto à cama onde ela estava deitada e abanou o seu rosto. Acariciou a sua testa e, com uma expressão desolada, lhe perguntou se ela precisava de alguma coisa, qualquer coisa — foi assim mesmo que ele disse, repetindo as palavras.
Quero o mulá Faizullah — disse Mariam.
Claro. Ele está ali fora. Vou chamá-lo.
Foi só quando o vulto esguio e encurvado do mulá apareceu na porta da kolba que Mariam chorou, pela primeira vez naquele dia.
Ah, Mariam jo…
O velho veio sentar-se ao seu lado e pegou o seu rosto com as mãos.
Chore, Mariam jo. Chore. Não há vergonha nenhuma nisso. Mas lembre-se, minha filha, do que diz o Corão: “Bendito seja Aquele em cujas Mãos está o reino e que tem poder sobre tudo. Que criou a morte e a vida para testar-vos e saber quem de vós age melhor.” O Corão diz a verdade, minha menina. Para cada tribulação e cada sofrimento que Deus nos faz enfrentar, Ele tem um motivo.
Mas Mariam não conseguia perceber consolo algum nas palavras de Deus. Não naquele dia. Não naquele momento. Tudo o que podia ouvir era a voz de Nana dizendo: “Se você for, eu morro. Simplesmente morro.” Tudo o que podia fazer era chorar, chorar e deixar as suas lágrimas caírem nas mãos manchadas e encarquilhadas do mulá Faizullah.
No trajeto até sua casa, Jalil foi sentado no banco de trás do carro, com o braço passado nos ombros da filha.
Pode ficar comigo, Mariam jo — disse ele. — Já mandei prepararem um quarto para você. No andar de cima. Acho que vai gostar. A janela dá para o jardim.
Pela primeira vez, Mariam podia ouvi-lo com os ouvidos de Nana. Agora era tão fácil perceber a falta de sinceridade que sempre esteve escondida por trás daquelas afirmações ocas e falsas. Não conseguia sequer olhar para ele.
Quando o carro parou diante da casa, o motorista abriu a porta para os dois e pegou a valise de Mariam. Jalil a conduziu para dentro, com as mãos nos seus ombros, passando pelo mesmo portão de grade onde, dois dias atrás, ela tinha dormido na calçada a sua espera. Dois dias atrás — quando o que Mariam mais queria no mundo era andar por esse jardim com Jalil, e, agora, isso tudo parecia ter acontecido numa outra existência. Como a sua vida podia ter dado tamanha guinada em tão pouco tempo, era o que tentava entender. Manteve os olhos no chão, acompanhando seus próprios passos pelo caminho calçado com pedras cinzentas. Sabia que havia outras pessoas por ali, murmurando, afastando-se para deixá-los passar. Sentia o peso de olhos que a fitavam lá das janelas do andar de cima.
Já dentro da casa, Mariam continuou de olhos baixos. Foi andando por um tapete cor-de-vinho, com desenhos octogonais azuis e amarelos que se repetiam formando um padrão; com o canto do olho, viu bases de mármore de estatuas, a parte inferior de vasos de flores, as bordas de tapeçarias ricamente coloridas penduradas nas paredes. A escada por onde subiram era larga e recoberta por um tapete do mesmo tipo, preso na base de cada degrau. No alto da escada, Jalil a levou para o lado esquerdo, passando por mais um longo corredor atapetado. Então ele parou diante de uma porta, abriu-a e deixou que ela entrasse.
Às vezes, suas irmãs Niloufar e Atieh vêm brincar aqui — disse Jalil. — Mas, em geral, usamos esse quarto para os hóspedes. Acho que vai ficar bem instalada. É bonito, não é?
O quarto tinha uma cama com uma colcha verde estampada com flores, em casa de abelha, tecida em ponto miúdo. As cortinas, abertas para mostrar o jardim lá embaixo, eram do mesmo tecido da colcha. Ao lado da cama, havia uma cômoda com três gavetas e, sobre ela, um vaso de flores. Nas paredes, dispostos em prateleiras, havia porta-retratos com fotos de pessoas que Mariam não conhecia.
Numa dessas prateleiras, a menina viu uma coleção de bonecas de madeira, idênticas, formando uma fila em ordem decrescente de tamanho. Percebendo o seu olhar, Jalil disse:
São bonequinhas matrioska que comprei em Moscou. Pode brincar com elas, se quiser. Não tem problema algum.
Mariam sentou na cama.
Quer alguma coisa? — perguntou Jalil.
Mariam se deitou. Fechou os olhos. Pouco depois, ouviu ele encostar a porta com todo cuidado.
Khaled Hosseini, in A Cidade do Sol

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