[…]
Mariam chorava deitada no banco. Não quis se sentar para que ninguém
a visse. Imaginava que, hoje de manhã, toda Herat já estaria
sabendo a que ponto ela tinha se rebaixado. Adoraria que o mulá
Faizullah estivesse ali, para poder deitar a cabeça no seu colo e
deixar que ele a consolasse.
Depois
de algum tempo, o chão foi ficando mais irregular e o capo do carro,
mais empinado. Tinham chegado à estradinha que subia de Herat ate
Gul Daman.
Mariam
se perguntava o que diria a Nana. Como poderia lhe pedir desculpas?
Como teria coragem de encará-la agora?
O
carro parou e o motorista veio ajudá-la a saltar.
— Vou
com você ate lá — disse ele.
A
menina se deixou levar pela estrada e, depois, pela trilha. Havia
madressilvas pelo caminho, e asclépias também. As abelhas zumbiam
em meio as flores silvestres reluzentes. O motorista lhe deu a mão
para ajudá-la a atravessar o riacho. Depois, a soltou novamente.
Estava dizendo que os célebres ventos dos 120 dias logo estariam
chegando, soprando desde o meio da manhã até o anoitecer; que os
mosquitos iam entrar naquele seu frenesi alimentar, mas, de repente,
parou diante dela, tentando tapar os seus olhos, empurrando-a para o
lado de onde tinham vindo e exclamando:
— Volte!
Não! Não olhe agora. Vire-se! Volte!
Mas
foi em vão. Mariam viu assim mesmo. Uma rajada de vento afastou as
folhagens do salgueiro-chorão, como se abrisse uma cortina, e a
menina avistou de relance o que estava do outro lado: a cadeira de
encosto alto, caída no chão. A corda pendendo de um ramo mais alto.
E Nana pendurada na outra ponta.
Nana
foi enterrada num canto do cemitério de Gul Daman. Mariam ficou
perto de Bibi jo, junto com as mulheres, enquanto o mulá
Faizullah recitava preces ao lado do túmulo e os homens baixavam
aquele corpo amortalhado a sepultura.
Depois,
Jalil a levou até a kolba onde, diante dos aldeões que os
acompanhavam, fez uma grande exibição de cuidado para com a filha.
Recolheu alguns dos seus pertences e guardou tudo numa valise. Sentou
junto à cama onde ela estava deitada e abanou o seu rosto. Acariciou
a sua testa e, com uma expressão desolada, lhe perguntou se ela
precisava de alguma coisa, qualquer coisa — foi assim mesmo
que ele disse, repetindo as palavras.
— Quero
o mulá Faizullah — disse Mariam.
— Claro.
Ele está ali fora. Vou chamá-lo.
Foi
só quando o vulto esguio e encurvado do mulá apareceu na porta da
kolba que Mariam chorou, pela primeira vez naquele dia.
— Ah,
Mariam jo…
O
velho veio sentar-se ao seu lado e pegou o seu rosto com as mãos.
— Chore,
Mariam jo. Chore. Não há vergonha nenhuma nisso. Mas
lembre-se, minha filha, do que diz o Corão: “Bendito seja Aquele
em cujas Mãos está o reino e que tem poder sobre tudo. Que criou a
morte e a vida para testar-vos e saber quem de vós age melhor.” O
Corão diz a verdade, minha menina. Para cada tribulação e cada
sofrimento que Deus nos faz enfrentar, Ele tem um motivo.
Mas
Mariam não conseguia perceber consolo algum nas palavras de Deus.
Não naquele dia. Não naquele momento. Tudo o que podia ouvir era a
voz de Nana dizendo: “Se você for, eu morro. Simplesmente morro.”
Tudo o que podia fazer era chorar, chorar e deixar as suas lágrimas
caírem nas mãos manchadas e encarquilhadas do mulá Faizullah.
No
trajeto até sua casa, Jalil foi sentado no banco de trás do carro,
com o braço passado nos ombros da filha.
— Pode
ficar comigo, Mariam jo — disse ele. — Já mandei prepararem um
quarto para você. No andar de cima. Acho que vai gostar. A janela dá
para o jardim.
Pela
primeira vez, Mariam podia ouvi-lo com os ouvidos de Nana. Agora era
tão fácil perceber a falta de sinceridade que sempre esteve
escondida por trás daquelas afirmações ocas e falsas. Não
conseguia sequer olhar para ele.
Quando
o carro parou diante da casa, o motorista abriu a porta para os dois
e pegou a valise de Mariam. Jalil a conduziu para dentro, com as mãos
nos seus ombros, passando pelo mesmo portão de grade onde, dois dias
atrás, ela tinha dormido na calçada a sua espera. Dois dias atrás
— quando o que Mariam mais queria no mundo era andar por esse
jardim com Jalil, e, agora, isso tudo parecia ter acontecido numa
outra existência. Como a sua vida podia ter dado tamanha guinada em
tão pouco tempo, era o que tentava entender. Manteve os olhos no
chão, acompanhando seus próprios passos pelo caminho calçado com
pedras cinzentas. Sabia que havia outras pessoas por ali, murmurando,
afastando-se para deixá-los passar. Sentia o peso de olhos que a
fitavam lá das janelas do andar de cima.
Já
dentro da casa, Mariam continuou de olhos baixos. Foi andando por um
tapete cor-de-vinho, com desenhos octogonais azuis e amarelos que se
repetiam formando um padrão; com o canto do olho, viu bases de
mármore de estatuas, a parte inferior de vasos de flores, as bordas
de tapeçarias ricamente coloridas penduradas nas paredes. A escada
por onde subiram era larga e recoberta por um tapete do mesmo tipo,
preso na base de cada degrau. No alto da escada, Jalil a levou para o
lado esquerdo, passando por mais um longo corredor atapetado. Então
ele parou diante de uma porta, abriu-a e deixou que ela entrasse.
— Às
vezes, suas irmãs Niloufar e Atieh vêm brincar aqui — disse
Jalil. — Mas, em geral, usamos esse quarto para os hóspedes. Acho
que vai ficar bem instalada. É bonito, não é?
O
quarto tinha uma cama com uma colcha verde estampada com flores, em
casa de abelha, tecida em ponto miúdo. As cortinas, abertas para
mostrar o jardim lá embaixo, eram do mesmo tecido da colcha. Ao lado
da cama, havia uma cômoda com três gavetas e, sobre ela, um vaso de
flores. Nas paredes, dispostos em prateleiras, havia porta-retratos
com fotos de pessoas que Mariam não conhecia.
Numa
dessas prateleiras, a menina viu uma coleção de bonecas de madeira,
idênticas, formando uma fila em ordem decrescente de tamanho.
Percebendo o seu olhar, Jalil disse:
— São
bonequinhas matrioska que comprei em Moscou. Pode brincar com elas,
se quiser. Não tem problema algum.
Mariam
sentou na cama.
— Quer
alguma coisa? — perguntou Jalil.
Mariam
se deitou. Fechou os olhos. Pouco depois, ouviu ele encostar a porta
com todo cuidado.
Khaled
Hosseini, in A Cidade do Sol
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