Iô
Liodoro era homem punindo pelos bons costumes, com virtude
estabelecida, mais forte que uma lei, na sisudez dos antigos. Somente
que o amor dele pela família, pelos seus, era uma adoração, era
vasteza. Via disso, de certo, não queria se casar outra vez, depois
de tanto que enviuvara. E ele, por natureza, bem que carecia, mais
que o comum dos outros, de reservar mulher. Mas prezava o inteiro
estatuto de sua casa, como que não aceitando nem a ordem renovada,
que para ele já podia parecer desordem. Motivo pelo qual a nora
viera para o Buriti Bom, e ali permanecendo. Para iô Liodoro, Dona
Lalinha tinha de continuar fazendo parte da família, perante Deus e
perante todos. O que se estranhava, o que o povo às vezes dizia, em
esconsos, aos cochichos, isso era invencionice de romance, a saber:
que iô Irvino se escondia de algum delito que efetuara, e agora
andava por ali, só que ninguém não via, estava em acôito, no
interior mesmo da casa da fazenda... Se não — o que se dizia —
como era que a mulher dele podia ficar lá, tão durado tempo, e
sempre assim chique vestida, sempre numa alegriazinha, diversa do
razoável do que devia de ser? Soada de bobéia. Cujice. Povo, quando
fala, fantasêia.
Ao
mais certo, nhô Gualberto tinha pensado vagarosamente nisso, era em
outra razão. A que a Dona Lalinha, além de não esperar para
qualquer hora a volta arrependida do marido, a bem que ela calculava
os outros resultados: que eram, pelo seguro, não sair de lá, ir
engambelando todos e se cravando de sempre fazer parte, isso com
lindos olhos na herança — quando iô Liodoro testasse. Moça de
cidade raciocina muito. Nhô Gualberto achava e não achava. Calado é
melhor; e seja, as fazendas vizinhavam em método de bem-estar.
Assim,
quase uma espécie como se ele fosse capaz de ir ao Buriti Bom na
devoção com que se vai à igreja. Ali tudo confortava. A ver,
tirante a malvolência de Maria Behú, a pobrezinha desgraçada, em
birra com seu mesmo aspeto. Ao leve quisesse criticar, achava também
que aquele luxo constante de Dona Lalinha chamava a atenção demais,
não assentava bem com o sertão do lugar, com o moderamento regrado,
simplicidade nos usos. Umas vezes, da porta, ele avistara dentro do
quarto dela: com cadeirinhas diferentes, e os cortinados, fileira de
vidros de cheiro na cômoda baixa, e no chão capachado até um
tapete. Semelhava tivessem exportado para ali um aconchêgo de
cidade. No que a cidade e o sertão não se dão entendimento: as
regalias da vida, que as mesmas não são. Que aqui no sertão, um,
ou uma, que muito goza, como que está fazendo traição aos outros.
Mas iô Liodoro permitia, e o que permitia queria, e o que queria
mandava, silenciosão. O que ele segundas vezes dera a entender,
atravessando em meias-palavras: que, uma criatura em todos os
melindres crescida e acostumada, que certamente havia de definhar,
caso não tivessem com ela a serviência desses tratos — conforme
que planta de alegrete, quando se demuda, carece de vir com um grosso
da terra própria nas raízes, como protestação. Não fosse isso.
Nhô Gualberto julgava decifrar ao justo: o que iô Liodoro
consecutia era uma coisa só — era rehaver o filho, iô Irvino. Iô
Liodoro acreditava no tempo passado. Iô Irvino voltasse, era para
encontrar Dona Lalinha, mas Dona Lalinha cuidada entre suas sedas e
joias, de cidade, sem desmerecer. Iô Liodoro era o pai de todos.
Guimarães
Rosa, in Buriti
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