sábado, 29 de agosto de 2020

Ahab e Starbuck na cabine

Segundo o costume, eles bombeavam o navio na manhã seguinte; e, oh!, uma quantidade nem um pouco pequena de óleo subiu com a água; os tonéis embaixo deviam estar com um sério vazamento. Via-se muita preocupação; e Starbuck desceu à cabine para reportar o infausto incidente.*
Ora, pelo Sul e pelo Oeste o Pequod rolava próximo a Formosa e às ilhas Bashi, entre as quais se situa uma das saídas tropicais dos mares da China para o Pacífico. E assim Starbuck encontrou Ahab diante de um mapa geral dos arquipélagos orientais; e uma outra carta separada representando a longa costa oriental das ilhas japonesas – Nippon, Matsmai e Shikoku. Com sua nova perna de marfim, branca como a neve, apoiada à perna fixa da mesa, e com o podão de um grande canivete à mão, o velho notável, de costas para a porta do corredor, franzia a testa e traçava mais uma vez suas velhas rotas.
Quem vem?”, ao ouvir passos à porta, mas sem se virar. “Ao convés! Fora!”
O Capitão Ahab se engana; sou eu. O óleo no porão está vazando, senhor. Temos de subir os Burtons e retirar a carga do navio.”
Subir os Burtons e retirar a carga do navio? Agora que estamos chegando perto do Japão; lançar a âncora aqui por uma semana para remendar um lote de argolas velhas?”
Ou fazemos isso, senhor, ou perderemos em um dia mais óleo do que conseguimos juntar em um ano. Vale a pena salvar aquilo que buscamos por vinte mil milhas, senhor.”
Certo, certo, se a pegarmos.”
Eu estava falando do óleo no porão, senhor.”
E eu não estava falando ou pensando em nada disso. Vá embora! Que vaze! Eu também estou vazando. Sim! Vazamentos em vazamentos! Não apenas cheio de barris com vazamentos, mas os barris com vazamentos estão num navio com vazamentos; e esse é um apuro muito pior do que o do Pequod, homem. E todavia não me detenho para tapar meu vazamento; pois quem pode encontrá-lo num casco tão carregado; e como esperaria tapá-lo, mesmo se o encontrasse, nessa tormenta assustadora da vida? Starbuck! Não içarei os Burtons.”
Que dirão os proprietários, senhor?”
Que os proprietários fiquem na praia de Nantucket e gritem mais alto que os Tufões! Que importa a Ahab? Proprietários, proprietários? Estás sempre a me falar desses proprietários sovinas, Starbuck, como se os proprietários fossem minha consciência. Mas, atenta, o único verdadeiro proprietário de alguma coisa é seu comandante; e escuta, minha consciência está na quilha deste navio – ao convés!”
Capitão Ahab”, disse o imediato enrubescido, entrando na cabine com uma audácia tão estranhamente prudente e respeitosa que não só parecia querer fazer todo o possível para evitar a mais leve manifestação exterior de si mesma, como também indicava mais do que alguma desconfiança de si mesma: “Um homem melhor do que eu poderia te perdoar por aquilo que o ofenderia prontamente num homem mais jovem; sim, e mais feliz, capitão Ahab”.
Que inferno! Como ousas pensar em me criticar? – Ao convés!”
Não, senhor, ainda não; rogo-lhe. Senhor, atrevo-me a – ser indulgente! Não seria possível entendermo-nos melhor, Capitão Ahab?”
Ahab pegou um mosquete carregado que estava no cabide de armas (parte da mobília da maioria das cabines dos marinheiros dos Mares do Sul), e apontando-o na direção de Starbuck exclamou: “Só existe um Deus que é Senhor da terra e um Capitão que é senhor do Pequod – Ao convés!”.
Por um instante, pelos olhos flamejantes do oficial e seu rosto inflamado, você quase teria pensado que ele de fato recebera a carga do cano apontado. Porém, controlando a emoção, levantou-se quase calmo e, saindo da cabine, parou um instante e disse: “Não me insultaste, senhor, mas me ultrajaste; contudo, por isso não te peço que tenhas cuidado com Starbuck; pois apenas te ririas; mas que Ahab tenha cuidado com Ahab; tem cuidado contigo mesmo, velho”.
Ele demonstra coragem, e contudo obedece; trata-se de uma valentia muito cautelosa!”, murmurou Ahab, enquanto Starbuck desaparecia. “O que disse – que Ahab tenha cuidado com Ahab –, há alguma coisa aí!” Então, usando sem perceber o mosquete como bengala, com um duro semblante ele andou de um lado para o outro na pequena cabine; logo as rugas espessas da testa relaxaram e, devolvendo a arma ao cabide, ele voltou ao convés.
És muito bom sujeito, Starbuck”, ele disse em voz baixa ao imediato; então, levantando a voz, disse à tripulação: “Ferrai as velas dos joanetes, rizai forte as gáveas, à proa e à ré; trazei a verga principal; subi os Burtons e descarregai os barris do porão principal.”
Talvez seja inútil querer saber o motivo por que, respeitando Starbuck, Ahab agia desse modo. Poderia ter sido um ímpeto de honestidade; ou simples protocolo de prudência, que, sob tais circunstâncias, proibia imperiosamente o menor sinal de inimizade declarada, ainda que temporária, contra o importante primeiro oficial de seu navio. Em todo caso, as ordens foram executadas e os Burtons subiram.

*Nos navios baleeiros usados para a pesca de Cachalotes que têm grande quantidade de óleo a bordo, é um dever colocar uma mangueira no porão regularmente duas vezes por semana e banhar os tonéis com água do mar, que, em seguida, a intervalos variáveis, é retirada pelas bombas do navio. Dessa forma procura-se manter os tonéis fechados e úmidos, enquanto, pelas características alteradas da água retirada, os marujos detectam rapidamente qualquer vazamento sério na carga preciosa. [N. A]
Herman Melville, in Moby Dick

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