quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Agora é que são elas / Capítulo 23



1

Agora só tem pra frente. Olhou pra trás, vira estátua de sal que nem a mulher de Lot. O que passou, passou, não deixe que Perseu vire pedra no olhar da Medusa. Nem pergunte por quê, só iria estragar tudo entre nós. Com o tempo e muita Norma Propp, conseguia tirar a festa da cabeça, esquecia até o casamento que estava marcado. Esqueci completamente aquela casa monstruosa, onde todas as coisas reais sempre acabavam se transformando em cerimônias. Em ruínas da realidade.

2

Cuidado, filho, Propp me alertou. Você está saindo da parte preparatória. Já está além da função gama-1, a proibição. Já passou pela transgressão da proibição, a função delta-3. Agora está ingressando na zona A, a Região do Dano. De agora em diante, todo cuidado é pouco. Mas pode confiar que vamos fazer tudo que estiver a nosso alcance para que ultrapasse essa área com um mínimo de escoriações.

3

Parecia que nada ia adiante. TUDO TINHA MUDADO, está certo. Mas tudo só mudava do parado para o parado. Minha relação com Norma passava meses sem que acontecesse nada. Não era o pior dos nadas, podia haver piores. A gente se via, até fizemos algumas coisas, mas nada podia disfarçar aquele cheiro de queimado, a gente cultivando aquela falta entre nós, duas pessoas cuidando juntas da mesma planta carnívora.

4

O caixão está vazio, bobinho, ela sussurrou. Se você quiser, vamos lá ver. Cada um se vestiu como pôde, e lá fomos descendo escadas no escuro até a cena do velório. Não tinha ninguém. A única pessoa que tinha era uma velha dormindo, de maneira que realmente não tinha ninguém. Chegamos até o caixão. Lá estava, lá dentro, aquela puta mulher, que cantava pra caralho, e com a qual eu sabia que, cedo ou tarde, ia ter que me casar.

5

Ficava muito bem como cadáver. Não era como esses mortos que ainda não assumiram, e ainda guardam aquela expressão de um vivo que foi surpreendido pelo apito do juiz marcando o final do segundo tempo. Difícil encontrar cadáver mais convicto. Ela não estava morta. Estava ali, na fronteira entre dois mundos, quase sorrindo, no sorriso, quase dizendo, meu deus, ninguém imaginava que era tão fácil!

6

Para uma noite, era função de Propp demais pro cu de um só. E minha alma de astrônomo não tinha motor de caminhão. A próxima emoção que viesse ia ter que dormir no corredor, está certo que eu sou o herói, mas assim também já é demais. Vai ser herói assim na puta que o pariu. Por falar nisso, adivinhem quem eu vi ontem? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe Norma Propp, se você adivinhar. Também não sei o que você vai fazer com ela. Eu nunca soube.
Um dia, ela me disse:
Acho você um cara muito vazio, sabe?
Olhei para mim, a luz me atravessava como se eu fosse apenas o actante de uma das funções. E eu queria ser real, ah, como eu queria ser real para que Norma me tocasse, me apalpasse, apertasse meu bíceps esquerdo e dissesse, que muque!
Daí eu diria:
Você ainda não viu nada.
E ela:
Também, você não me mostra.
E, quando visse, ia querer e ia ganhar, e ia ganhar Norma, porque o caminho para o coração das mulheres entra por baixo, isso nem precisava ter atingido a sabedoria para perceber.

7

Naquele tempo, a gente mudava muito. Os preços dos aluguéis viviam subindo, passavam do limite do orçamento, e a gente mudava, sempre para um lugar pior, mais longe, mais apertado e mais cheio de maridos espancando a mulher e crianças chutando os cachorros.
E assim lá ia eu para a minha quinta mudança em um ano e meio.
Norma ficou de me ajudar. Não era muita coisa, a tralha de sempre de um estudante solteiro, livros, apostilas, discos, revistinhas de sacanagem, os pôsteres de Guevara e Hendrix, as peças de um sonho que a gente ia remontar num novo tabuleiro.
Naquele tempo, sempre ia acontecer alguma coisa. Jesus ia voltar. A bomba ia cair. O preço da vodca ia subir. O telefone ia tocar. Ia, ia, ia.
Norma veio, mas veio tarde. Quando ela chegou, a caminhonete já tinha levado tudo (tudo?) para o novo endereço.
Só restava a cama e o colchão, no canto de um quarto vazio. Pelas paredes, a ausência dos pôsteres fazia marcas de sol, buracos negros por onde eu podia meter a mão e (ai!) apalpar meus machucados. Não consigo distinguir aquela sensação de quando a gente muda de casa da emoção de estar ali sentado na cama de mãos dadas com Norma.
Não tenho sido legal com você, não é?
Um pouco.
Você tem que entender. Eu não sei o que é. Talvez alguma coisa. Mas tenho certeza que um dia. Afinal. Não é mesmo?
Eu disse, claro. E Norma levantou, e começou a falar como seria bom ter um quarto maior, com uma janela maior, nem perdeu a oportunidade de fantasiar uma varanda, explodindo em gaiolas de passarinho nas manhãs de sol.
Naquele ano, parecia que todo mundo tinha enlouquecido. Como se algum cometa estivesse pra chegar.
Quem nunca rezou, estava fazendo novena. Materialistas apareciam usando contas de Oxalá. Quem nunca roubou um palito de fósforo, estava dando desfalque em banco. Os filhos estavam virando pais, aos milhares, e os pais e mães mijavam nas fraldas e pediam colo.
Aquele ano, vocês sabem.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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