1
Agora
só tem pra frente. Olhou pra trás, vira estátua de sal que nem a
mulher de Lot. O que passou, passou, não deixe que Perseu vire pedra
no olhar da Medusa. Nem pergunte por quê, só iria estragar tudo
entre nós. Com o tempo e muita Norma Propp, conseguia tirar a festa
da cabeça, esquecia até o casamento que estava marcado. Esqueci
completamente aquela casa monstruosa, onde todas as coisas reais
sempre acabavam se transformando em cerimônias. Em ruínas da
realidade.
2
— Cuidado,
filho, Propp me alertou. Você está saindo da parte preparatória.
Já está além da função gama-1, a proibição. Já passou pela
transgressão da proibição, a função delta-3. Agora está
ingressando na zona A, a Região do Dano. De agora em diante, todo
cuidado é pouco. Mas pode confiar que vamos fazer tudo que estiver a
nosso alcance para que ultrapasse essa área com um mínimo de
escoriações.
3
Parecia
que nada ia adiante. TUDO TINHA MUDADO, está certo. Mas tudo só
mudava do
parado para o parado.
Minha relação com Norma passava meses sem que acontecesse nada. Não
era o pior dos nadas, podia haver piores. A gente se via, até
fizemos algumas coisas, mas nada podia disfarçar aquele cheiro de
queimado, a gente cultivando aquela falta entre nós, duas pessoas
cuidando juntas da mesma planta carnívora.
4
— O
caixão está vazio, bobinho, ela sussurrou. Se você quiser, vamos
lá ver. Cada um se vestiu como pôde, e lá fomos descendo escadas
no escuro até a cena do velório. Não tinha ninguém. A única
pessoa que tinha era uma velha dormindo, de maneira que realmente
não tinha ninguém. Chegamos até o caixão. Lá estava, lá dentro,
aquela puta mulher, que cantava pra caralho, e com a qual eu sabia
que, cedo ou tarde, ia ter que me casar.
5
Ficava
muito bem como cadáver. Não era como esses mortos que ainda não
assumiram, e ainda guardam aquela expressão de um vivo que foi
surpreendido pelo apito do juiz marcando o final do segundo tempo.
Difícil encontrar cadáver mais convicto. Ela não estava morta.
Estava ali, na fronteira entre dois mundos, quase sorrindo, no
sorriso, quase dizendo, meu deus, ninguém imaginava que era tão
fácil!
6
Para
uma noite, era função de Propp demais pro cu de um só. E minha
alma de astrônomo não tinha motor de caminhão. A próxima emoção
que viesse ia ter que dormir no corredor, está certo que eu sou o
herói, mas assim também já é demais. Vai ser herói assim na puta
que o pariu. Por falar nisso, adivinhem quem eu vi ontem? Dou-lhe
uma, dou-lhe duas, dou-lhe Norma Propp, se você adivinhar. Também
não sei o que você vai fazer com ela. Eu
nunca soube.
Um
dia, ela me disse:
— Acho
você um cara muito vazio, sabe?
Olhei
para mim, a luz me atravessava como se eu fosse apenas o actante de
uma das funções. E eu queria ser real, ah, como eu queria ser real
para que Norma me tocasse, me apalpasse, apertasse meu bíceps
esquerdo e dissesse, que muque!
Daí
eu diria:
— Você
ainda não viu nada.
E
ela:
— Também,
você não me mostra.
E,
quando visse, ia querer e ia ganhar, e ia ganhar Norma, porque o
caminho para o coração das mulheres entra por baixo, isso nem
precisava ter atingido a sabedoria para perceber.
7
Naquele
tempo, a gente mudava muito. Os preços dos aluguéis viviam subindo,
passavam do limite do orçamento, e a gente mudava, sempre para um
lugar pior, mais longe, mais apertado e mais cheio de maridos
espancando a mulher e crianças chutando os cachorros.
E
assim lá ia eu para a minha quinta mudança em um ano e meio.
Norma
ficou de me ajudar. Não era muita coisa, a tralha de sempre de um
estudante solteiro, livros, apostilas, discos, revistinhas de
sacanagem, os pôsteres de Guevara e Hendrix, as peças de um sonho
que a gente ia remontar num novo tabuleiro.
Naquele
tempo, sempre ia acontecer alguma coisa. Jesus ia voltar. A bomba ia
cair. O preço da vodca ia subir. O telefone ia tocar. Ia, ia, ia.
Norma
veio, mas veio tarde. Quando ela chegou, a caminhonete já tinha
levado tudo (tudo?) para o novo endereço.
Só
restava a cama e o colchão, no canto de um quarto vazio. Pelas
paredes, a ausência dos pôsteres fazia marcas de sol, buracos
negros por onde eu podia meter a mão e (ai!) apalpar meus
machucados. Não consigo distinguir aquela sensação de quando a
gente muda de casa da emoção de estar ali sentado na cama de mãos
dadas com Norma.
— Não
tenho sido legal com você, não é?
— Um
pouco.
— Você
tem que entender. Eu não sei o que é. Talvez alguma coisa. Mas
tenho certeza que um dia. Afinal. Não é mesmo?
Eu
disse, claro. E Norma levantou, e começou a falar como seria bom ter
um quarto maior, com uma janela maior, nem perdeu a oportunidade de
fantasiar uma varanda, explodindo em gaiolas de passarinho nas manhãs
de sol.
Naquele
ano, parecia que todo mundo tinha enlouquecido. Como se algum cometa
estivesse pra chegar.
Quem
nunca rezou, estava fazendo novena. Materialistas apareciam usando
contas de Oxalá. Quem nunca roubou um palito de fósforo, estava
dando desfalque em banco. Os filhos estavam virando pais, aos
milhares, e os pais e mães mijavam nas fraldas e pediam colo.
Aquele
ano, vocês sabem.
Paulo
Leminski,
in Agora é
que são elas
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