Monsenhor
Caldas interrompeu a narração do desconhecido:
— Dá
licença? é só um instante.
Levantou-se,
foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e
disse-lhe em voz baixa:
— João,
vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e
pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um
sujeito doido. Anda, vai depressa.
E,
voltando à sala:
— Pronto,
disse ele; podemos continuar.
— Como
ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de
1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha
então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço,
até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as
estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia
mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei
a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito
longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder,
porque as almas são incombustíveis. A sua pegou fogo alguma vez?
— Não,
senhor.
— São
incombustíveis. Fui subindo, subindo; na distância de quarenta mil
léguas, ouvi uma deliciosa música, e logo que cheguei a cinco mil
léguas, desceu um enxame de almas, que me levaram num palanquim
feito de éter e plumas. Entrei daí a pouco no novo sol, que é o
planeta dos virtuosos da terra. Não sou poeta, monsenhor; não ouso
descrever-lhe as magnificências daquela estância divina. Poeta que
fosse, não poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a
emoção da grandeza, do deslumbramento, da felicidade, os êxtases,
as melodias, os arrojos de luz e cores, uma coisa indefinível e
incompreensível. Só vendo. Lá dentro é que soube que completava
mais um milheiro de almas; tal era o motivo das festas
extraordinárias que me fizeram, e que duraram dois séculos, ou,
pelas nossas contas, quarenta e oito horas. Afinal, concluídas as
festas, convidaram-me a tornar à terra para cumprir uma vida nova;
era o privilégio de cada alma que completava um milheiro. Respondi
agradecendo e recusando, mas não havia recusar. Era uma lei eterna.
A única liberdade que me deram foi a escolha do veículo; podia
nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer? Que faria Vossa
Reverendíssima no meu lugar?
— Não
posso saber; depende...
— Tem
razão; depende das circunstâncias. Mas imagine que as minhas eram
tais que não me davam gosto a tornar cá. Fui vítima da
inexperiência, monsenhor, tive uma velhice ruim, por essa razão.
Então lembrou-me que sempre ouvira dizer a meu pai e outras pessoas
mais velhas, quando viam algum rapaz: — “Quem me dera aquela
idade, sabendo o que sei hoje!” Lembrou-me isto, e declarei que me
era indiferente nascer mendigo ou potentado, com a condição de
nascer experiente. Não imagina o riso universal com que me ouviram.
Jó, que ali preside a província dos pacientes, disse-me que um tal
desejo era disparate; mas eu teimei e venci. Daí a pouco escorreguei
no espaço; gastei nove meses a atravessá-lo até cair nos braços
de uma ama-de-leite, e chamei-me José Maria. Vossa Reverendíssima é
Romualdo, não?
— Sim,
senhor; Romualdo de Sousa Caldas.
— Será
parente do padre?
— Não,
senhor.
— Bom
poeta o padre décima. Mas, vamos ao que importa. Conto-lhe primeiro
o que me sucedeu; depois lhe direi o que desejo de Vossa
Reverendíssima. Entretanto, se me permitisse ir fumando...
Monsenhor
Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala
que José Maria conservava atravessada sobre as pernas. Este preparou
vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos anos,
pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante.
Apareceu ali, tinha o padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma
entrevista para negócio grave e urgente. Monsenhor fê-lo entrar e
sentar-se; no fim de dez minutos, viu que estava com um lunático.
Perdoava-lhe a incoerência das ideias ou o assombroso das invenções;
podia ser até que lhe servissem de estudo. Mas o desconhecido teve
um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam
fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um
homem forte e louco? Enquanto esperava o auxílio policial, Monsenhor
Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça,
espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os
loucos, as mulheres e os potentados. José Maria acendeu finalmente o
cigarro, e continuou:
— Renasci
em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice,
porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava
pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a
andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual
fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar
paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por
medo de contusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma
infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e
moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia que durante
esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra,
foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de
outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas.
Cresci; fiz-me rapaz, entrei no período dos amores... Não se
assuste; serei casto, como a primeira ceia. Vossa Reverendíssima
sabe o que é uma ceia de rapazes e mulheres?
— Como
quer que saiba?...
— Tinha
dezenove anos, continuou José Maria, e não imagina o espanto dos
meus amigos, quando me declarei pronto a ir a uma tal ceia... Ninguém
esperava tal coisa de um rapaz tão cauteloso, que fugia de tudo, dos
sonos atrasados, dos sonos excessivos, de andar sozinho a horas
mortas, que vivia, por assim dizer, às apalpadelas. Fui à ceia; era
no Jardim Botânico, obra esplêndida. Comidas, vinhos, luzes,
flores, alegria dos rapazes, os olhos das damas, e, por cima de tudo,
um apetite de vinte anos. Há de crer que não comi nada? A lembrança
de três indigestões apanhadas quarenta anos antes na primeira vida,
fez-me recuar. Menti dizendo que estava indisposto. Uma das damas
veio sentar-se à minha direita, para curar-me; outra levantou-se
também, e veio para a minha esquerda, com o mesmo fim. Você cura de
um lado, eu curo do outro, disseram elas. Eram lépidas, frescas,
astuciosas, e tinham fama de devorar o coração e a vida dos
rapazes. Confesso-lhe que fiquei com medo e retraí-me. Elas fizeram
tudo, tudo; mas em vão. Vim de lá de manhã, apaixonado por ambas,
sem nenhuma delas, e caindo de fome. Que lhe parece? Concluiu José
Maria pondo as mãos nos joelhos, e arqueando os braços para fora.
— Com
efeito...
— Não
lhe digo mais nada; Vossa Reverendíssima adivinhará o resto. A
minha segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa,
enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo como, atado
ao próprio cadáver... Não, a comparação não é boa. Como lhe
parece que vivo?
— Sou
pouco imaginoso. Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as
asas e amarrado pelos pés...
— Justamente.
Pouco imaginoso? Achou a fórmula; é isso mesmo. Um pássaro, um
grande pássaro, batendo as asas, assim...
José
Maria ergueu-se, agitando os braços, à maneira de asas. Ao
erguer-se, caiu-lhe a bengala no chão; mas ele não deu por ela.
Continuou a agitar os braços, em pé, defronte do padre, e a dizer
que era isso mesmo, um pássaro, um grande pássaro... De cada vez
que batia os braços nas coxas, calcanhares, dando ao corpo uma
cadência de movimentos, e conservava os pés unidos, para mostrar
que os tinha amarrados. Monsenhor aprovava de cabeça; ao mesmo tempo
afiava as orelhas para ver se ouvia passos na escada. Tudo silêncio.
Só lhe chegavam os rumores de fora: — carros e carroças que
desciam, quitandeiras apregoando legumes, e um piano da vizinhança.
José Maria sentou-se finalmente, depois de apanhar a bengala, e
continuou nestes termos:
— Um
pássaro, um grande pássaro. Para ver quanto é feliz a comparação,
basta a aventura que me traz aqui, um caso de consciência, uma
paixão, uma mulher, uma viúva, D. Clemência. Tem vinte e seis
anos, uns olhos que não acabam mais, não digo no tamanho, mas na
expressão, e duas pinceladas de buço, que lhe completam a
fisionomia. É filha de um professor jubilado. Os vestidos pretos
ficam-lhe tão bem que eu às vezes digo-lhe rindo que ela não
enviuvou senão para andar de luto. Caçoadas! Conhecemo-nos há um
ano, em casa de um fazendeiro de Cantagalo. Saímos namorados um do
outro. Já sei o que me vai perguntar: por que é que não nos
casamos, sendo ambos livres...
— Sim,
senhor.
— Mas,
homem de Deus! é essa justamente a matéria da minha aventura. Somos
livres, gostamos um do outro, e não nos casamos; tal é a situação
tenebrosa que venho expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua
teologia, ou o que quer que seja, explicará, se puder. Voltamos para
a corte namorados. Clemência morava com o velho pai, e um irmão
empregado no comércio; relacionei-me com ambos, e comecei a
frequentar a casa, em Mata-cavalos. Olhos, apertos de mão, palavras
soltas, outras ligadas, uma frase, duas frases, e estávamos amados e
confessados. Uma noite, no patamar da escada, trocamos o primeiro
beijo... Perdoe estas coisas, monsenhor; faça de conta que me está
ouvindo de confissão. Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar
que saí dali tonto, desvairado, com a imagem de Clemência na cabeça
e o sabor do beijo na boca. Errei cerca de duas horas, planeando uma
vida única; determinei pedir-lhe a mão no fim da semana, e casar
daí a um mês. Cheguei às derradeiras minúcias, cheguei a redigir
e ornar de cabeça as cartas de participação. Entrei em casa depois
de meia-noite, e toda essa fantasmagoria voou, como as mutações à
vista nas antigas peças de teatro. Veja se adivinha como.
— Não
alcanço...
— Considerei,
no momento de despir o colete, que o amor podia acabar depressa;
tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as botas, lembrou-me coisa
pior: — podia ficar o fastio. Concluí a toilette de dormir, acendi
um cigarro, e, reclinado no canapé, pensei que o costume, a
convivência, podia salvar tudo; mas, logo depois, adverti que as
duas índoles podiam ser incompatíveis; e que fazer com duas índoles
incompatíveis e inseparáveis? Mas, enfim, dei de barato tudo isso,
porque a paixão era grande, violenta; considerei-me casado, com uma
linda criancinha... Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam
vir dez; algumas aleijadas. Também podia vir uma crise, duas crises,
falta de dinheiro, penúria, doenças; podia vir alguma dessas
afeições espúrias que perturbam a paz doméstica... Considerei
tudo e concluí que o melhor era não casar. O que não lhe posso
contar é o meu desespero; faltam-me expressões para lhe pintar o
que padeci nessa noite... Deixa-me fumar outro cigarro?
Não
esperou resposta, fez o cigarro, e acendeu-o. Monsenhor não podia
deixar de admirar-lhe a bela cabeça, no meio do desalinho próprio
do estado; ao mesmo tempo notou que ele falava em termos polidos, e
que, apesar dos rompantes mórbidos, tinha maneiras. Quem diabo podia
ser esse homem? José Maria continuou a história, dizendo que deixou
de ir à casa de Clemência, durante seis dias, mas não resistiu às
cartas e às lágrimas. No fim de uma semana correu para lá, e
confessou-lhe tudo, tudo. Ela ouviu-o com muito interesse, e quis
saber o que era preciso para acabar com tantas cismas, que prova de
amor queria que ela lhe desse. A resposta de José Maria foi uma
pergunta.
— Está
disposta a fazer-me um grande sacrifício? disse-lhe eu. Clemência
jurou que sim. “Pois bem, rompa com tudo, família e sociedade;
venha morar comigo; casamo-nos depois desse noviciado.” Compreendo
que Vossa Reverendíssima arregale os olhos. Os dela encheram-se de
lágrimas; mas, apesar de humilhada, aceitou tudo. Vamos; confesse
que sou um monstro.
— Não,
senhor...
— Como
não? Sou um monstro. Clemência veio para minha casa, e não imagina
as festas com que a recebi. “Deixo tudo, disse-me ela; você é
para mim o universo.” Eu beijei-lhe os pés, beijei-lhe os tacões
dos sapatos. Não imagina o meu contentamento. No dia seguinte,
recebi uma carta tarjada de preto; era a notícia da morte de um tio
meu, em Santa Ana do Livramento, deixando-me vinte mil contos. Fiquei
fulminado. “Entendo, disse a Clemência, você sacrificou tudo,
porque tinha notícia da herança.” Desta vez, Clemência não
chorou, pegou em si e saiu. Fui atrás dela, envergonhado, pedi-lhe
perdão; ela resistiu. Um dia, dois dias, três dias, foi tudo vão;
Clemência não cedia nada, não falava sequer. Então declarei-lhe
que me mataria; comprei um revólver, fui ter com ela, e
apresentei-lho; é este.
Monsenhor
Caldas empalideceu. José Maria mostrou-lhe o revólver, durante
alguns segundos, tornou a metê-lo na algibeira, e continuou:
— Cheguei
a dar um tiro. Ela, assustada, desarmou-me e perdoou-me. Ajustamos
precipitar o casamento, e, pela minha parte, impus uma condição:
doar os vinte mil contos à Biblioteca Nacional. Clemência
atirou-se-me aos braços, e aprovou-me com um beijo. Dei os vinte mil
contos. Há de ter lido nos jornais... Três semanas depois
casamo-nos. Vossa Reverendíssima respira como quem chegou ao fim.
Qual! Agora é que chegamos ao trágico. O que posso fazer é
abreviar umas particularidades e suprimir outras; restrinjo-me a
Clemência. Não lhe falo de outras emoções truncadas, que são
todas as minhas, abortos de prazer, planos que se esgarçam no ar,
nem das ilusões de saia rota, nem do tal pássaro... plás...
plás... plás...
E,
de um salto, José Maria ficou outra vez de pé, agitando os braços,
e dando ao corpo uma cadência. Monsenhor Caldas começou a suar
frio. No fim de alguns segundos, José Maria parou, sentou-se, e
reatou a narração, agora mais difusa, mais derramada, evidentemente
mais delirante. Contava os sustos em que vivia, desgostos e
desconfianças. Não podia comer um figo às dentadas, como outrora;
o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não cria nas caras alegres
da gente que ia pela rua: preocupações, desejos, ódios, tristezas,
outras coisas, iam dissimuladas por umas três quartas partes delas.
Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo, ou tuberculoso, ou
assassino, etc. Não conseguia dar um jantar que não ficasse triste
logo depois da sopa, pela ideia de que uma palavra sua, um gesto da
mulher, qualquer falta de serviço podia sugerir o epigrama
digestivo, na rua, debaixo de um lampião. A experiência dera-lhe o
terror de ser empulhado. Confessava ao padre que, realmente, não
tinha até agora lucrado nada; ao contrário, perdera até, porque
fora levado ao sangue... Ia contar-lhe o caso do sangue. Na véspera,
deitara-se cedo, e sonhou... Com quem pensava o padre que ele sonhou?
— Não
atino...
— Sonhei
que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala
dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. “Toma,
disse-me ele; são os lírios da Escritura; segundo ouviste, nem
Salomão em toda a pompa pode ombrear com eles. Salomão é a
sapiência. Sabes o que são estes lírios, José? São os teus vinte
anos.” Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo
pegou deles, cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe
digo nada; no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um
réptil fedorento e torpe, dei um grito, e arrojei para longe as
flores. Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada:
“José Maria, são os teus vinte anos.” Era uma gargalhada assim:
— cá, cá, cá, cá, cá...
José
Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico. De
repente, parou; levantou-se, e contou que, tão depressa abriu os
olhos, como viu a mulher diante dele, aflita e desgrenhada. Os olhos
de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe que os olhos doces também
fazem mal. Ela arrojou-se-lhe aos pés... Neste ponto a fisionomia de
José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé,
começou a recuar, trêmulo e pálido.
— Não,
miserável! não! tu não me fugirás! bradava José Maria investindo
para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o
padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um rumor
de espadas e de pés.
Machado
de Assis, in Histórias sem data
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