quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A favor do medo

Estou certa de que através da idade da pedra fui exatamente maltratada pelo amor de algum homem. Data desse tempo um certo pavor que é secreto.
Ora, em noite cálida, estava eu sentada a conversar polidamente com um homem cavalheiro que era civilizado, de terno escuro e unhas corretas. Estava eu, como diria Sérgio Porto, posta em sossego e comendo umas goiabinhas. Eis senão quando diz o Homem: “Vamos dar um passeio?”
Não. Vou dizer a verdade crua. O que ele disse foi: “Vamos dar um passeíto?
Por que passeíto jamais tive tempo de saber. Pois que imediatamente, da altura de milhares de séculos, rolou em fragor a primeira pedra de uma avalancha: meu coração. Quem? Quem já me levou na idade da pedra para um passeíto do qual nunca mais voltei porque lá morando fiquei?
Não sei que elemento de terror existirá na delicadeza monstruosa da palavra passeíto.
Rolado o meu primeiro coração, engolida atrozmente a goiabinha – estava eu ridiculamente assustada diante de um improvável perigo.
Improvável digo eu hoje, muito da assegurada que estou pelos brandos costumes, pela polícia áspera, e por mim mesma fugidia que nem a mais mimética das enguias. Mas bem queria saber o que eu outrora diria, na idade da pedra, quando me sacudiam, quase macaca, da minha frondosa árvore. Que nostalgia, preciso passar uns tempos no campo.
Engolida, pois, a minha goiabinha, empalideci sem que a cor civilizadamente me abandonasse o rosto: o medo era vertical demais no tempo para deixar vestígios na superfície. Aliás não era o medo. Aliás era o terror. Aliás era a queda de todo o meu futuro. O homem, este meu igual que me tem assassinado por amor, e a isto se chama de amar, e é.
Passeíto? Assim também diziam para Chapeuzinho Vermelho, que esta só mais tarde cuidou de se cuidar. “Vou é me acautelar, por via das dúvidas debaixo das folhas hei de morar” – de onde me vinha essa toada? Não sei, mas boca de povo em Pernambuco não erra.
Que me desculpe o Homem que talvez se reconheça neste relato de um medo. Mas nem tenha ele dúvida de que “o problema era meu”, como se diz. Não tenha dúvida de que eu deveria tomar o convite pelo que ele na verdade devia ser, igual a ter me mandado antes rosas: uma gentileza, a noite estava tépida, ele tinha carro à porta. E nem tenha dúvida de que – na simplória divisão a que os séculos me obrigaram entre o bem e o mal – sei que ele era Homem Bom Caverna Direita Só Cinco Mulheres Não Bate Nenhuma Todas Contentes. E por favor me entenda – apelo para o seu bom humor – sei que homem de fronteira, como ele, usa com simplicidade a palavra passeíto, o que para mim, no entanto, teve a terrível ameaça de uma doçura. Agradeço-lhe exatamente essa palavra que, por ser nova para mim, veio me dar o bom escândalo.
Expliquei ao Homem que não podia dar o passeíto, fina que sou. Séculos adestraram-me, e hoje sou uma fina entre as finas, mesmo como no caso, sem necessitar, por via das dúvidas debaixo das folhas hei de morar.
O Homem, esse não insistiu, se bem que não me pareça poder dizer com verdade que ele se agradou. Defrontamo-nos por menos de um átimo de segundo – com o decorrer dos milênios, eu e o Homem fomo-nos compreendendo cada vez melhor, e hoje menos de um átimo de segundo nos chega –, defrontamo-nos, e o não, apesar de balbuciado, ecoou escandalosamente contra as paredes da caverna que sempre favoreceram mais as vontades do Homem.
Depois que o Homem imediatamente se retirou, eis-me salvaguardada e ainda assustada. Por um triz um passeíto onde eu talvez perdesse a vida? Hoje em dia sempre se perde a vida à toa.
Retirando-se o Homem, percebi então que estava toda alegre, toda vivificada. Oh, não por causa do convite ao passeio, nós todas temos sido durante milênios continuamente convidadas a passeios, estamos habituadas e contentes, raramente açoitadas. Estava alegre e revolucionada – mas era pelo medo.
Pois sou a favor do medo.
Então certos medos – aqueles não mesquinhos e que têm raiz de raça inextirpável – têm-me dado a minha mais incompreensível realidade. A ilogicidade de meus medos me tem encantado, dá-me uma aura que até me encabula. Mal consigo esconder, sob a sorridente modéstia, meu grande poder de cair em medos.
Mas no caso deste medo particular, pergunto-me de novo o que me terá acontecido na idade da pedra? Algo natural não foi, ou eu não teria conservado até hoje esse olhar de lado, e não me teria tornado delicadamente invisível, assumindo sonsa a cor das sombras e dos verdes, andando sempre do lado de dentro das calçadas, e com falso andar seco. Algo natural não terá sido, posto que, sendo eu por força e sem escolha uma natural, o natural não me teria assustado. Ou já então – na própria idade das cavernas que ainda hoje é o meu mais secreto lar – ou já então eu fiz uma neurose sobre o natural de um passeíto?
É, mas ter um coração de esguelha é que está certo: é faro, direção de ventos, sabedoria, esperteza de instinto, experiência de mortes, adivinhação em lagos, desadaptação inquietantemente feliz, pois descubro que ser desadaptada é a minha fonte. Pois bem se sabe que vai chover muito quando os mosquitos anunciam, e cortar minha cabeleira em lua nova dá-lhe de novo as forças, dizer um nome que não ouso traz atraso e muita desgraça, amarrar o diabo com linha vermelha no pé do móvel tem pelo menos amarrado os meus demônios. E sei – com meu coração que por nunca ter ousado expor-se no centro, e há séculos, mantém-se em sombra à esquerda –, bem sei que o Homem é um ser tão estranho a si mesmo que, só por ser inocente, é natural.
Não, quem tem razão é este meu coração indireto, mesmo que os fatos me desmintam diretamente. Passeíto dá morte certa, e a cara espantada fica de olho vidrado olhando para a lua cheia de si.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Nenhum comentário:

Postar um comentário