Eu
gostava de desenhar. Estava sempre desenhando. Isso antigamente.
Agora perdi a vontade de desenhar, ou melhor, não sei o que
desenhar. Eu desenhava tudo, mulheres nuas, homem morto, flor —
flor eu não gostava muito, só do cheiro —, desenhava ruas,
letreiros luminosos, pessoas em volta de uma mesa jantando (ou
almoçando), dois sujeitos jogando sinuca, aleijadinho —
aleijadinho eu gostava de desenhar, vários tipos de aleijadinho, sem
perna, em cadeira de rodas, sem braço, mas o que eu gostava mesmo
era do aleijadinho com duas muletas e sem as duas pernas. Eu
desenhava a cara desse aleijadinho como a de um homem feliz, feliz
porque podia passear pelas ruas, ainda que fosse de muletas.
Havia
uma coisa que eu detestava: desenho abstrato. “Abstração: uma
coisa de difícil compreensão, obscura”, diz o dicionário.
Novamente o dicionário: “Abstrato: que não é claro para o
espírito, que é difícil de compreender, de explicar.”
Você
desenha uma porcaria que não quer dizer nada e diz “é uma
abstração”, e os bestalhões dizem “muito interessante”. Será
que essa gente não sabe que arte tem que ter um significado? Tem que
exprimir algo?
Voltando
ao meu problema. Eu sento à mesa, o papel e os crayons na frente, e
não consigo desenhar. Na verdade nem sento mais à mesa. Vou direto
pra televisão ver uma das porcarias que exibem.
Falta
inspiração? Isso parece coisa religiosa e eu sou ateu. Falta
motivação? O artista precisa estar motivado? Isso me parece pueril,
uma tolice.
Eu
sento à mesa, com o material para desenhar, espero um minuto.
Desenhar o quê? Vou para a poltrona e ligo a televisão. Penso,
amanhã vou desenhar. Mas volto a ver televisão. Vejo televisão
todos os dias. Isso é coisa de débil mental. Mas vejo televisão, e
vejo novamente, e novamente, e novamente. Ver televisão deixa o
sujeito maluco.
Compro
um revólver, vou dar um tiro na cabeça.
Mas
em vez de dar um tiro na cabeça atiro na televisão. Vários tiros,
destruo aquele monstro.
Não
demorou muitos dias para que eu voltasse a desenhar.
Televisão?
Nunca mais. Sem televisão eu fiquei bom, deixei de ser um neurótico,
ou coisa parecida.
Mas
quando passo na vitrine de uma loja e vejo um aparelho de televisão
confesso que o meu coração bate apressado e minha boca se enche de
saliva.
Rubem
Fonseca, in Histórias curtas
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