sexta-feira, 24 de julho de 2020

Tanto esforço

Foi uma visita. A antiga colega veio de São Paulo e visitou-a. Recebeu-a com sanduíches e chá, aperfeiçoando como pôde a visita, a tarde e o encontro. A amiga chegou linda e feminina. Com o correr das horas começou pouco a pouco a se desfazer, até que apareceu uma cara não tão moça nem tão alegre, mais intensa, de amargura mais viva. Raspou-se em breve a sua beleza menor e mais fácil. E em breve a dona da casa tinha diante de si uma mulher que, se era menos bonita, era mais bela, e que discursava como antigamente o seu ardente pensamento, confundindo-se, usando lugares-comuns do raciocínio, tentando provar-lhe a necessidade de se caminhar para a frente, provando que “cada um tinha uma missão a cumprir”. Nesse ponto a palavra missão deve ter-lhe parecido usada demais, não para si mesma, mas para a dona da casa que fora uma das inteligentes do grupo. Então corrigiu: “missão, ou o que você quiser.” A dona da casa mexeu-se na cadeira, perturbada.
Quando a visita saiu, estava com o andar feio, parecia tomada por aquele cansaço que vem de decisões prematuras demais em relação ao tempo de ação: tudo o que ela decidira, demoraria anos até poder alcançar. Ou até nunca alcançar. A dona da casa desceu de elevador com a visita, levou-a até a rua. Estranhou ao vê-la de costas: o reverso da medalha eram cabelos desfeitos e infantis, ombros exagerados pela roupa mal cortada, vestido curto, pernas grossas. Sim. Uma mulher maravilhosa e solitária. Lutando sobretudo contra o próprio preconceito que a aconselhava a ser menos do que era, que a mandava dobrar-se. Tanto, tanto esforço, e os cabelos caindo infantis. Ao seu lado, na rua, passavam criaturas que certamente se haviam dificultado menos, e que seguiam para um destino mais imediato. A dona da casa sentiu no peito o peso de uma compreensão constrangida: como ajudá-la? Sem que jamais pudesse transformar a compreensão em um ato.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Nenhum comentário:

Postar um comentário