Não
é fácil, muito pelo contrário, despedir uma ressaca que se instale
em seu quarto, disposta a ficar o dia todo, sobretudo quando a gente
não é mais o que se chama um broto. São em geral as ressacas muito
fieis e suscetíveis; para driblá-las, é preciso ser de circo e,
como nos números acrobáticos, qualquer distração pode, no caso,
causar a morte do artista.
A
primeira providência a tomar, quando você desprega os olhos e vê
que ela está realmente a seu lado, é não demonstrar o mais ligeiro
sinal de surpresa, mas tratá-la com um carinho um pouco distraído:
Bom
dia, ressaquinha.
Então
respire fundo três vezes. Não prestar atenção aos vagidos dela,
às suas caretas, àquele hálito de abominável melancolia. Não se
considere um crápula, que é isso o que ela quer. Mantenha a cabeça
imóvel a fim de não denunciar, com um gemido, a sua dor sísmica.
Esqueça os seus compromissos, por mais graves que sejam (o remorso é
uma das brechas por onde pode penetrar a fera), fingindo-se
absolutamente livre, como se dispusesse de seu tempo à vontade. É
de todo necessário que ela não desconfie que você tem na cidade um
encontro com um gerente de banco.
Se
ela lhe oferecer maldosamente um cigarro, aceite-o, para abandoná-lo
depois de três ou quatro tragadas lentas. Olhar pela janela é
sempre perigoso; isso porque pode estar fazendo um magnífico dia
frio e chuvoso; mas também pode uivar lá fora um sinistro e
tempestuoso sol. A visão macabra de um dia luminoso costuma
esmorecer sem remédio os ressacados de mais hábil talento.
Por
mais violenta que seja a sua vontade de tossir, não o faça; tal
coisa poderia trazer-lhe consequências imprevisíveis, sendo
compensador qualquer sacrifício no sentido de adiar esse desejo para
momento mais propício.
Evite
o café. Faça como se fosse dormir ainda, sem cair na leviandade de
prometer que jamais porá de novo a boca em álcool. Essa
capitulação, além de falsa, condiciona uma desmoralização
interior que insufla forças novas à inimiga.
As
ressacas não morrem de amores pela cama, existindo algumas, no
entanto, extremamente espertas, que se acomodam a essa situação,
podendo permanecer indeterminadamente no seu leito. Escute o que lhe
digo e mande vir o jornal: contorne os cronistas da noite, mergulhe
com paciência nas seções de economia, caso você goste de futebol,
e nas páginas esportivas, caso você se interesse por economia. Essa
atitude é capaz de desorientá-la um pouco. Sem levar a mão ao
coração (e se o fizer, pelo menos não revele o seu nervosismo pela
taquicardia), peça um jarro de água geladíssima e duas aspirinas.
Como o gato, a ressaca teme a água. Aguarde o momento preciso. No
que a ressaca bobear, arraste-se até o chuveiro, escancare a
torneira de água fria, enquanto escova os dentes com um exagero de
pasta e por muito tempo. O jorro da água, prenunciando o impacto
frio, amolece um pouco mais a covarde. Em seguida, com o destemor
digno de um almirante batavo, enfrente o chuveiro, sem importar que a
água o sufoque um pouco, pois a sufocação deverá também
atingi-la. Reze então três padre-nossos e três ave-marias, e
comece a tossir.
Se
existe mar perto de sua casa, ótimo; se não existe, paciência.
Almoce, não deixe de almoçar, faça-me o favor. Se gostar de jiló,
pode-se ter em conta de um homem privilegiado, pois todas as ressacas
de meu conhecimento, como quase todo mundo, detestam jiló. Fígado
fresco de galinha é outro alimento que elas não apreciam nada.
Bebida, o ideal, por enquanto, é mate gelado. Toque na vitrola
discos de Bach ou Débussy, mas somente peças para piano ou cravo,
jamais sinfônicas. Uma boa ressaca é tarada por música orquestral.
Fuja igualmente das arestas do rock´n´roll, das espirais do bolero
e dos círculos concêntricos da valsa vienense.
Vá
deitar-se no divã e ler mais um pouco, de preferência uma história
boba de revista frívola. Quando a ressaca já estiver bastante
aborrecida com esse tratamento, levante-se e caia na rua, cometendo
no primeiro botequim a violência final, um copo de chope bem tirado,
um só. E vá enfrentar o gerente.
Mas
há ressacas versáteis, assim como há sujeitos indefesos. Posto o
quê, não aceitaremos reclamações.
Paulo
Mendes Campos, in O cego de Ipanema
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