sexta-feira, 17 de julho de 2020

O surpreendente Chile

Observatório La Silla - Imagem: Babak Tafreshi

Em traços gerais pode dizer-se que quatro climas muito diferentes existem ao longo deste meu espigado Chile. O país está dividido em províncias de nomes formosos, aos quais os militares, que possivelmente tinham alguma dificuldade em memorizá-los, acrescentaram um número. Recuso-me a usá-los, porque não é possível que uma nação de poetas tenha o mapa salpicado de números, como um delírio aritmético. Falemos das quatro grandes regiões, começando pelo grande norte, inóspito e rude, vigiado por altas montanhas, que ocupa uma quarta parte do território e esconde nas suas entranhas um tesouro inesgotável de minerais.

Fui ao norte na minha infância e não o esqueci, apesar de entretanto ter decorrido meio século. Mais tarde na vida tive de atravessar um par de vezes o deserto de Atacama e, mesmo que a experiência seja sempre extraordinária, as recordações mais persistentes são as dessa primeira vez. Na minha memória, Antofagasta, que em língua quechua quer dizer “povo da salina grande”, não é a cidade moderna de hoje, mas um porto antiquado e pobre, com cheiro a iodo, salpicado de botes pesqueiros, gaivotas e pelicanos. Antofagasta surgiu no século XIX como uma miragem no deserto, graças à indústria do salitre, que foi um dos principais produtos de exportação do país durante várias décadas. Mais tarde, quando se inventou o nitrato sintético, o porto não perdeu a sua importância, porque agora exporta cobre, mas as companhias salitreiras foram fechando uma a uma e a pampa ficou semeada de povoados fantasmas. Estas duas palavras, “povoado fantasma”, deram asas à minha imaginação naquela primeira viagem.

Recordo-me que a minha família e eu subimos, afogados debaixo de tantas malas, para um comboio que andava a passo de caracol pelo inclemente deserto de Atacama até à Bolívia. Sol, pedras calcinadas, quilômetros e quilômetros de uma solidão espectral, de vez em quando um cemitério abandonado, uns edifícios de adobe ou madeira em ruínas. Nem as moscas sobreviviam àquele calor seco. A sede era inextinguível; bebíamos litros de água, chupávamos laranjas e defendíamo-nos da poeira, que se introduzia por cada resquício, a muito custo. Os nossos lábios gretavam até sangrar, doíam-nos os ouvidos, estávamos desidratados. À noite caía um frio duro como cristal, enquanto a lua iluminava a paisagem com um resplendor azul. Muitos anos mais tarde visitei Chuquicamata, a maior mina de cobre a céu aberto do mundo, um imenso anfiteatro onde milhares de homens da cor da terra, como formigas, arrancam o minério das pedras. O comboio subiu a mais de quatro mil metros e a temperatura desceu até ao ponto em que a água gelava nos copos. Passamos pela salina de Uyuni, um branco mar onde reina um silêncio puro e onde não voam pássaros, e por outras salinas onde vimos elegantes flamingos. Pareciam pinceladas de cor entre os cristais formados no sal, como pedras preciosas.

O chamado pequeno norte, que alguns não consideram propriamente uma região, divide o norte seco da fértil zona central. É lá que se situa o vale de Elqui, um dos centros espirituais da Terra que, segundo dizem, é mágico. As forças misteriosas de Elqui atraem peregrinos que acorrem para se ligarem à energia cósmica do universo e muitos deles ficam a viver em comunidades esotéricas. Meditação, religiões orientais, gurus de pelagens diversas, há de tudo em Elqui; é como um recanto da Califórnia. Ali também se faz o nosso pisco, um licor de uva moscatel, translúcido, virtuoso e sereno como a força angélica que emana dessa terra. É a matéria-prima do pisco sour, a nossa doce e traiçoeira bebida nacional, que se toma com confiança, mas que ao segundo copo dá um coice capaz de derrubar o mais valente. O nome deste licor usurpamo-lo sem contemplações à cidade de Pisco, no Peru. Se a qualquer vinho com borbulhas costuma chamar-se champanhe, embora o autêntico só seja o de Champagne, em França, suponho que também o nosso pisco se pode apropriar de um nome alheio. No pequeno norte foi construída La Silla, um dos observatórios astronômicos mais importantes do mundo, porque o ar é tão límpido que nenhuma estrela – nem morta nem por nascer – escapa ao olho do gigantesco telescópio. A propósito disto, contou-me alguém que ali trabalhou durante três décadas que os mais célebres astrônomos do mundo esperam durante anos a sua vez para esquadrinhar o universo. Comentei que devia ser estupendo trabalhar com cientistas que têm os olhos sempre postos no infinito e vivem desapegados das misérias terrenas; mas informou-me que é exatamente o contrário: os astrônomos são tão mesquinhos como os poetas. Disse que brigam pela marmelada do pequeno-almoço. A condição humana é surpreendente.
Isabel Allende, in O meu país inventado

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