Observatório La Silla - Imagem: Babak
Tafreshi
Em
traços gerais pode dizer-se que quatro climas muito diferentes
existem ao longo deste meu espigado Chile. O país está dividido em
províncias de nomes formosos, aos quais os militares, que
possivelmente tinham alguma dificuldade em memorizá-los,
acrescentaram um número. Recuso-me a usá-los, porque não é
possível que uma nação de poetas tenha o mapa salpicado de
números, como um delírio aritmético. Falemos das quatro grandes
regiões, começando pelo grande norte, inóspito e rude, vigiado por
altas montanhas, que ocupa uma quarta parte do território e esconde
nas suas entranhas um tesouro inesgotável de minerais.
Fui
ao norte na minha infância e não o esqueci, apesar de entretanto
ter decorrido meio século. Mais tarde na vida tive de atravessar um
par de vezes o deserto de Atacama e, mesmo que a experiência seja
sempre extraordinária, as recordações mais persistentes são as
dessa primeira vez. Na minha memória, Antofagasta, que em língua
quechua quer dizer “povo da salina grande”, não é a cidade
moderna de hoje, mas um porto antiquado e pobre, com cheiro a iodo,
salpicado de botes pesqueiros, gaivotas e pelicanos. Antofagasta
surgiu no século XIX como uma miragem no deserto, graças à
indústria do salitre, que foi um dos principais produtos de
exportação do país durante várias décadas. Mais tarde, quando se
inventou o nitrato sintético, o porto não perdeu a sua importância,
porque agora exporta cobre, mas as companhias salitreiras foram
fechando uma a uma e a pampa ficou semeada de povoados fantasmas.
Estas duas palavras, “povoado fantasma”, deram asas à minha
imaginação naquela primeira viagem.
Recordo-me
que a minha família e eu subimos, afogados debaixo de tantas malas,
para um comboio que andava a passo de caracol pelo inclemente deserto
de Atacama até à Bolívia. Sol, pedras calcinadas, quilômetros e
quilômetros de uma solidão espectral, de vez em quando um cemitério
abandonado, uns edifícios de adobe ou madeira em ruínas. Nem as
moscas sobreviviam àquele calor seco. A sede era inextinguível;
bebíamos litros de água, chupávamos laranjas e defendíamo-nos da
poeira, que se introduzia por cada resquício, a muito custo. Os
nossos lábios gretavam até sangrar, doíam-nos os ouvidos,
estávamos desidratados. À noite caía um frio duro como cristal,
enquanto a lua iluminava a paisagem com um resplendor azul. Muitos
anos mais tarde visitei Chuquicamata, a maior mina de cobre a céu
aberto do mundo, um imenso anfiteatro onde milhares de homens da cor
da terra, como formigas, arrancam o minério das pedras. O comboio
subiu a mais de quatro mil metros e a temperatura desceu até ao
ponto em que a água gelava nos copos. Passamos pela salina de Uyuni,
um branco mar onde reina um silêncio puro e onde não voam pássaros,
e por outras salinas onde vimos elegantes flamingos. Pareciam
pinceladas de cor entre os cristais formados no sal, como pedras
preciosas.
O
chamado pequeno norte, que alguns não consideram propriamente uma
região, divide o norte seco da fértil zona central. É lá que se
situa o vale de Elqui, um dos centros espirituais da Terra que,
segundo dizem, é mágico. As forças misteriosas de Elqui atraem
peregrinos que acorrem para se ligarem à energia cósmica do
universo e muitos deles ficam a viver em comunidades esotéricas.
Meditação, religiões orientais, gurus de pelagens diversas, há de
tudo em Elqui; é como um recanto da Califórnia. Ali também se faz
o nosso pisco, um licor de uva moscatel, translúcido, virtuoso e
sereno como a força angélica que emana dessa terra. É a
matéria-prima do pisco sour, a nossa doce e traiçoeira bebida
nacional, que se toma com confiança, mas que ao segundo copo dá um
coice capaz de derrubar o mais valente. O nome deste licor
usurpamo-lo sem contemplações à cidade de Pisco, no Peru. Se a
qualquer vinho com borbulhas costuma chamar-se champanhe, embora o
autêntico só seja o de Champagne, em França, suponho que também o
nosso pisco se pode apropriar de um nome alheio. No pequeno norte foi
construída La Silla, um dos observatórios astronômicos mais
importantes do mundo, porque o ar é tão límpido que nenhuma
estrela – nem morta nem por nascer – escapa ao olho do gigantesco
telescópio. A propósito disto, contou-me alguém que ali trabalhou
durante três décadas que os mais célebres astrônomos do mundo
esperam durante anos a sua vez para esquadrinhar o universo. Comentei
que devia ser estupendo trabalhar com cientistas que têm os olhos
sempre postos no infinito e vivem desapegados das misérias terrenas;
mas informou-me que é exatamente o contrário: os astrônomos são
tão mesquinhos como os poetas. Disse que brigam pela marmelada do
pequeno-almoço. A condição humana é surpreendente.
Isabel
Allende, in O meu país inventado
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