1.
Começo te dizendo que não tenho nada contra manipular, assim como
não tenho nada contra ser manipulado; ser instrumento da vontade de
terceiros é condição da existência, ninguém escapa a isso, e
acho que as coisas, quando se passam desse jeito, se passam como não
poderiam deixar de passar (a falta de recato não é minha, é da
vida). Mas te advirto, Paula: a partir de agora, não conte mais
comigo como tua ferramenta.
2.
Você me deu muitas coisas, me cumulou de atenções (excedendo-se,
por sinal), me ofereceu presentes, me entregou perdulariamente o teu
corpo, tentou me arrastar pra lugares a que acabei não indo, e, não
fosse minha feroz resistência, até pessoas das tuas relações você
teria dividido comigo. Não quero discutir os motivos da tua
generosidade, me limito a um formal agradecimento, recusando contudo,
a todo risco, te fazer a credora que pode ainda chegar e me cobrar:
“você não tem o direito de fazer isso”. Fazer isso ou aquilo é
problema meu, e não te devo explicações.
3.
Nem foi preciso fazer um voto de pobreza, mas fiz há muito o voto de
ignorância, e hoje, beirando os quarenta, estou fazendo também o
meu voto de castidade. Você tem razão, Paula: não chego sequer a
conservador, sou simplesmente um obscurantista. Mas deixe este
obscurantista em paz, afinal, ele nunca se preocupou em fazer
proselitismo.
4.
E já que falo em proselitismo, devo te dizer também que não tenho
nada contra esse feixe de reivindicações que você carrega, a tua
questão feminista, essa outra do divórcio, e mais aquela do aborto,
essas questões todas que “estão varrendo as bestas do caminho”.
E quando digo que não tenho nada contra, entenda bem, Paula, quero
dizer simplesmente que não tenho nada a ver com tudo isso. Quer
saber mais? Acho graça no ruído de jovens como você. Que tanto
falam em liberdade? É preciso saber ouvir os gemidos da juventude:
em geral, vocês reclamam é pela ausência de uma autoridade forte,
mas eu, que nada tenho a impor, entenda isso, Paula, decididamente
não quero te governar.
5.
Sem suspeitar da tua precária superioridade, mais de uma vez você
me atirou um desdenhoso “velho” na cara. Nunca te disse, te digo
porém agora: me causa enjoo a juventude, me causa muito enjoo a tua
juventude, será que preciso fazer um trejeito com a boca pra te dar
a ideia clara do que estou dizendo? É bastante tranquilo este
depoimento, é sossegado, ao fazê-lo, me acredite, Paula, não me
doem os cotovelos. Está muito certa aquela tua amiga frenética
quando te diz que sou “incapaz de curtir gentes maravilhosas”.
Sou incapaz mesmo, não gosto de “gentes maravilhosas”, não
gosto de gente, para abreviar minhas preferências.
6.
Você me levava a supor às vezes que o amor em nossos dias, a
exemplo do bom senso em outros tempos, é a coisa mais bem dividida
deste mundo. Aliás, só mesmo uma perfeita distribuição de afeto
poderia explicar o arroubo corriqueiro a que todos se entregam com a
simples menção deste sentimento. Um tanto constrangido por turvar a
transparência dessa água, há muito que queria te dizer: vá que
seja inquestionável, mas tenho todas as medidas cheias dos teus
frívolos elogios do amor.
7.
Farto também estou das tuas ideias claras e distintas a respeito de
muitas outras coisas, e é só pra contrabalançar tua lucidez que
confesso aqui minha confusão, mas não conclua daí qualquer
sugestão de equilíbrio, menos ainda que eu esteja traindo uma
suposta fé na “ordem”, afinal, vai longe o tempo em que eu mesmo
acreditava no propalado arranjo universal (que uns colocam no começo
da história, e outros, como você, colocam no fim dela), e hoje, se
ponho o olho fora da janela, além do incontido arroto, ainda fico
espantado com este mundo simulado que não perde essa mania de fingir
que está de pé.
8.
Você pode continuar falando em nome da razão, Paula, embora até o
obscurantista, que arranja (ironia!) essas ideias, saiba que a razão
é muito mais humilde que certos racionalistas; você pode continuar
carreando areia, pedra e tantas barras de ferro, Paula, embora
qualquer criança também saiba que é sobre um chão movediço que
você há de erguer teu edifício.
9.
Pense uma vez sequer, Paula, na tua estranha atração por este
“velho obscurantista”, nos frêmitos roxos da tua carne, nessa
tua obsessão pelo meu corpo, e, depois, nas prateleiras onde você
arrumou com criterioso zelo todos os teus conceitos, encontre um
lugar também para esta tua paixão, rejeitada na vida.
10.
Sabe, Paula, ainda que sempre atenta à dobra mínima da minha
língua, assim como ao movimento mais ínfimo do meu polegar, fazendo
deste meu canto o ateliê do desenhista que ia no dia a dia emendando
traço com traço, compondo, sem ser solicitada, o meu contorno, me
mostrando no final o perfil de um moralista (que eu nunca soube se
era agravo ou elogio), você deixou escapar a linha mestra que daria
caráter ao teu rabisco. Estou falando de um risco tosco feito uma
corda e que, embora invisível, é facilmente apreensível pelo lápis
de alguns raros retratistas; estou falando da cicatriz sempre
presente como estigma no rosto dos grandes indiferentes.
11.
Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu
contexto, me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros
remoinhos virulentos que te agitam a cabeça. Pouco se me dá, Paula,
se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da
minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em
troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio.
12.
No pardieiro que é este mundo, onde a sensibilidade, como de resto a
consciência, não passa de uma insuspeitada degenerescência, certos
espíritos só podiam mesmo se dar muito mal na vida; mas encontrei,
Paula, esquivo, o meu abrigo: coração duro, homem maduro.
13.
Não me telefone, não estacione mais o carro na porta do meu prédio,
não mande terceiros me revelarem que você ainda existe, e nem tudo
o mais que você faz de costume, pois recorrendo a esses expedientes
você só consegue me aporrinhar. Versátil como você é, desempenhe
mais este papel: o de mulher resignada que sai de vez do meu caminho.
14.
Entenda, Paula: estou cansado, estou muito cansado, Paula, estou
muito, mas muito, mas muito cansado, Paula. (Teu baby-doll, teus
chinelos, tua escova de dentes, e outros apetrechos da tua toalete,
deixei tudo numa sacola lá embaixo, é só mandar alguém pegar na
portaria com o zelador.)
15.
Ainda: “a velha aí do lado”, a quem você se referia também
como “a carcaça ressabiada”, “o pacote de ossos”, “a
semente senil” e outras expressões exuberantes que o teu talento
verbal sempre é capaz de forjar mesmo para falar das coisas mirradas
da vida, nunca te revelei, Paula, te revelo agora: “aquele ventre
seco” é minha mãe, faz anos que vivemos em quitinetes separadas,
ainda que ao lado uma da outra. Não seja tola, Paula, não estou te
recriminando nada, sempre assisti com indiferença aos arremedos que
você fazia da “bruxa velha, preparando a poção pra envenenar
nossas relações”. Te digo mais: você talvez tivesse razão, é
provável que ela vivesse a espreitar minha porta das sombras da
escadaria, é provável que ela do fundo dos corredores te olhasse
“de um jeito maligno”, é provável ainda que ela, matreira
dentro do seu cubículo, te alcançasse todas as vezes que você saía
através do olho mágico da sua porta. Mas contenha, Paula, a tua
gula: você que, além de liberada e praticada, é também versada
nas ciências ocultas dos tempos modernos, não vá lambuzar
apressadamente o dedo na consciência das coisas; não fiz a
revelação como que te serve à mesa, não é um convite fecundo a
interpretações que te faço, nem minha vida está pedindo esse
desperdício. Quero antes lembrar o que minha mãe te dizia quando
você, ao cruzar com ela, e “só pra tirar um sarro”, perguntava
maliciosamente por mim, te sugerindo eu agora a mesma prudência, se
acaso amanhã teus amigos quiserem saber a meu respeito. Você pode
dispensar “a ridícula solenidade da velha”, mas não dispense o
seu irrepreensível comedimento, responda como ela invariavelmente te
respondia: “não conheço esse senhor”.
Raduan
Nassar, in Obra completa
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