Apesar
de nunca ter dito nada, e de usar sua necessidade de sono e de bons
sonhos como desculpa, vovô Jake não gostava da caça ao porco das
manhãs de domingo – não gostava nadinha. Ficava aborrecido pelo
fato de Miúdo estar se tornando obcecado por matar o Cerra-Dente.
Caçar era uma coisa, matar era outra, e a obsessão, de qualquer
forma, era, ela experiência de vovô, altamente traiçoeira; não se
pode nascer sem se soltar, e muito pouca gente conseguia soltar uma
obsessão.
A
constância do lampejo tenso e excitado nos olhos de Miúdo o
perturbava. Abençoava Fup por acompanhar Miúdo, pois, apesar da
impetuosidade, ela era lenta, e os dois juntos só cobriam cerca de
um oitavo do território que Miúdo conseguiria cobrir se fosse
sozinho ou com cachorros. No fundo do coração, vovô não queria
que o Cerra-Dente fosse morto; acreditava piamente que ele era a
reencarnação de seu velho amigo Johnny Sete Luas. Essa crença
constantemente o surpreendia já que em geral afirmava que essa coisa
de reencarnação era um monte de bosta de cavalo com dois metros de
altura.
Johnny
Sete Luas fora o único homem, além de vovô, a tomar uma dose do
Velho Sussurro da Morte sem vacilar Vovô o encontrara pela primeira
vez ogo depois de ter desistido do jogo em favor de uma vida mais
estável e sossegada. Estava sentado na varanda de frente,
experimentando sua quinta bagatela, quando viu um velho índio chegar
e cruzar o quintal, usando um chapéu de cowboy bem surrado e
uma espécie de cachecol preto, típico de sua gente. Apesar de nunca
o ter visto antes, vovô Jake o reconheceu pelas histórias como
sendo o Johnny Sete Luas, um velho índio pomo que perambulava pelas
colinas do litoral, aparentemente sem ter casa ou fonte de renda.
Segundo algumas histórias que tinha ouvido, Johnny Sete Luas tinha
sido treinado como pajé antes de o esmagamento imposto pela
civilização branca desintegrar os costumes tribais. Johnny Sete
Luas era suspeito de ter sabotado amplamente as cercas e o
equipamento pesado dos agricultores locais, e em geral não era
bem-vindo na área. No entanto, sempre se falava nele com um estranho
respeito – ele era polido e manso no falar, e o seu passado de xamã
sugeria certos poderes… nada específico… só uma sensação.
Vovô
sentira isso antes mesmo de Johnny Sete Luas chegar à varanda
perguntando se podia trabalhar em troca de algo para beber, de
preferência uísque. Sentaram-se na varanda e ficaram bebendo uísque
por dois dias, e até a tardinha do terceiro. Vovô Jake o achou um
excelente companheiro, pois durante todo esse tempo Johnny Sete Luas
não emitiu uma palavra. Ficou sentado, tomando uns goles na garrafa,
contemplando o dia, a noite, calmo e extremamente quieto.
Na
terceira noite, ele deu uma respirada profunda, virou-se para Jake e
disse:
– Deixa
eu te contar sobre meu nome, Sete Luas. Acrescentei o Johnny quando o
homem branco chegou, pois achei que soava jovem e sexy, mas
não parecer ter ajudado muito. Agora eu acho ruim inventar nomes,
mas o mantenho pra me lembrar que a gente precisar viver com os
próprios erros. Recebi o meu nome, Sete Luas, quando fui treinado
para pajé. Saí por aí, sozinho, procurando meu nome numa visão.
Perambulei e procurei, sem comida, por três dias, uma semana. Não
aconteceu nada. No sétimo dia, quando o sol tocou o mar, dei com um
grupo de moças de outra aldeia, colhendo junco e bagas. Era uma
noite morna de outono. Elas estavam acampadas ao longo de um pequeno
córrego cozinhando um salmão gordo, e tinham um pão de bolota de
carvalho e frutas silvestres. Você já reparou como a fome chega ao
máximo quando se está bem perto de satisfazê-la? Eu me juntei a
elas e comemos bem. Naquela noite, enquanto a lua cheia viajava pelo
céu, fiz amor com cada uma delas, e com cada uma senti a lua cheia
se queimando no meu corpo, uma luz grande, cor de pérola, explodindo
na minha cabeça. Sete Moças. Sete Luas – fez uma pausa, sorrindo
na penumbra. – Teu uísque… quatro luas, talvez cinco.
Desde
essa primeira visita e até ele morrer, seis anos mais tarde, Johnny
Sete Luas aparecia na casa de Jake mais ou menos a cada dois meses, e
Jake, ao mesmo tempo em que gostava de sua silenciosa companhia,
adorava suas raras elocuções. Sete Luas, por reverência ou
desconfiança da linguagem, nunca falava muito, mas, quando o fazia,
sempre dizia alguma coisa. Jake se lembrava de algumas vezes em
particular. Uma vez, enquanto olhavam o sol se pôr no mar, Sete Luas
dissera com o doce enfado do deslumbramento constante:
– Sabe,
eu vi o sol se pôr 30 mil vezes e não consigo me lembrar de duas
que tenham sido iguais. Que mais é possível desejar?
Numa
outra vez, varreu a mão pela paisagem e disse:
– Arg,
vocês brancos fizeram muito pra tirar isso da gente, mas nada pra
merecer. Vocês querem domar tudo, mas, se ficassem quieto e
sentissem por um momento, saberiam que tudo anseia por ser
selvagem – deu uma cuspida – E tosa essa gente com cercas,
cercas, cercas. Afinal, o âmago da questão não é se deixar nada
dentro e nada fora? Mas sei que você compreende isso, Jake, porque
você não tem cercas e dedica sua vida a fazer uísque e ficar
sossegado, e essas atividades nobres que valorizam o espírito de um
homem.
Essa
declaração veio assombrar Jake quando Miúdo começou a construir
as cercas. Mas quando Miúdo transformou a caça ao Cerra-Dente num
ritual obsessivo, o que assombrava Jake até o fundo era a lembrança
das palavras que Sete Luas lhe dissera da última vez.
Jake
caminhara com ele até o topo da colina para se despedir e, pouco
antes de partir, Sete Luas apontara para um pedaço de chão
recentemente escavado, obra de um porco-do-mato, dando um sorriso
estupendo:
– Ah,
aí vemos alguma esperança; o domesticado se tornando selvagem. Os
porcos são muito graciosos. Seus corpos são feitos para segurar o
céu. Eu não me importaria de ser um porco, alguma vez… um velho
porco, louco e grande. Seria ótimo.
Jim
Dodge, in Fup
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