Guimarães Rosa em suas andanças pelo sertão
Rapaz,
e se esse monte de conto e novela e romance e estória dos quais
estamos tratando aqui com tanto carinho, com tanta atenção, não
fossem de Guimarães Rosa? Ou, e se Guimarães Rosa não fosse
diplomata, alto funcionário do Itamaraty? Ou, e se esse mineiro da
grande família não tivesse morrido três dias depois de se tornar
imortal da Academia Brasileira [sic]
de Letras? Ou, mais uma vez, e se ele mesmo não tivesse adiado a
posse na Academia achando que, logo que tomasse posse, morreria? Já
pensou, se Guimarães fosse do Cariri? Se fosse um servidor público
de alguma repartição pequena de algum interior esquecido? Ou se nem
não tivesse sido amigo de José Olympio, nem fosse conhecido lá
pelo centro do mercado editorial? Será se, com alguma dessas
condicionais, estaríamos tratando do mais renomado e lido e
comentado escritor da Literatura Brasileira? Tenho cá minhas
dúvidas! A principal é por que eu tenho lido a fortuna crítica
dele e quase todos os doutores e doutoras que estudam a obra de João
Guimarães se pegam, com todas as garras, no fato de ele ter sido
extremamente culto e de ter sido embaixador. Parece que insistem
nisso como se fosse uma condição sine
qua non
para
determinar a força de sua narrativa. Parecem esquecer que ele é do
sertão. Parecem esquecer a influência direta e absoluta do universo
sertanejo para o desenvolvimento não apenas temático, mas formal da
obra de Guimarães. Um exemplo disso é o “Recado do Morro”,
primeira obra da segunda parte do Corpo
de Baile,
No
Urubuquaquá, no Pinhém.
Tem
gente que insiste, por exemplo, em dizer que Guimarães recebeu
influência direta de James Joyce, naquela velha atitude colonialista
de dizer que o que é bom pra gente é porque veio de fora. Valei-me,
meu Padim Ciço! Eu fico doidin quando leio essas bobagens! Guimarães
Rosa pode ter tido influência de tudo no mundo, da literatura
inglesa até a filosofia Xintoísta, mas a matéria vertente de sua
literatura tá lá em Minas, tá lá no armazém de seu Florduardo,
tá no sertão, tá no Brasil. Quando lemos o “Recado do Morro”
sentimos a força da cultura sertaneja saltando com a força de
Pê-Boi, que pra gigante só falta uns cinco centímetros, diante de
nossos olhos. A apropriação de uma narrativa feita sob várias
formas, a partir de vários narradores, diante dos olhos de todos no
sertão e que só chega ao ouvidos de Pedro Orósio, depois de
depurada, retrabalhada e cantada na viola de Laudelim. A viagem que o
recado dado pelo morro faz do Guégue até a compreensão de Pedrão
Chãbergo é a viagem da literatura brasileira. De um espaço, de uma
paisagem que ganha vida unicamente através do povo para ser
compreendida por esse mesmo povo. Em o “Recado do Morro” a
estória de uma traição, de uma morte à covardia, é recontada de
todas as formas possíveis e trecontada pelo narrador rosiano, que
captura da vida e torna vida através da forma, das formas.
Se
algum daqueles viajantes tivesse a chance de ouvir o sertão, de
ouvir o morro da Garça, da Graça divina, do milagre nem talvez
tivesse sido necessária tanta volta, mas foi preciso um que tivesse
a sensibilidade para ouvir o sertão, para ouvir o morro e passar de
boa em boca, pelos loucos e cantadores para o recado se tornar mito,
o mito se tornar canto e o canto se tornar logos para depois se
tornar mythos na forma e no conto de João Guimarães Rosa.
Desculpe-me
o Ulysses,
o Dublinenses,
o Retrato
do artista quando jovem,
o Finnegans
Wake.
Desculpem-me os doutorzinhos neurastênicos das capitais, mas
Guimarães Rosa era vaqueiro, era do sertão. Por isso sua força,
por isso a capacidade de ter reinventado a dado vida à Literatura
Brasileira: porque bebeu ele da fonte que dá vida a este país – o
sertão. Se vale o cheque pela sua assinatura, quem conta aqui é
aquele que narra, quem dá o recado é o morro, é o sertão, é o
povo. Conta quem conta e quem reconta e quem treconta.
Harlon
Homem de Lacerda
é Mestre em Letras pela UFPB e
Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí
(UESPI - Oeiras) – in
http://oberronet.blogspot.com/2015
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