"A Terra é azul", disse Yuri Gagarin
Extremamente
atrasada, reflito sobre os cosmonautas. Ou melhor, sobre o primeiro
cosmonauta. Quase um dia depois de Gagarin, nossos sentimentos já
estavam atrasados em contraposição à velocidade com que o
acontecimento nos ultrapassava. Agora, então, é atrasadíssima que
repenso no assunto. É um assunto difícil de se sentir.
Um
dia desses um menino, advertido de que a bola com que brincava cairia
no chão e amolaria os vizinhos de baixo, respondeu: ora, o mundo já
é automático, quando uma mão joga a bola no ar, a outra já é
automática e pega-a, não cai não.
A
questão é que nossa mão ainda não é bastante automática. Foi
com susto que Gagarin subiu, pois se o automático do mundo não
funcionasse a bola viria mais do que transtornar os vizinhos de
baixo. E foi com susto que minha mão pouco automática tremeu à
possibilidade de não ser rápida bastante e deixar o “acontecimento
cosmonauta” me escapar. A responsabilidade de sentir foi grande, a
responsabilidade de não deixar cair a bola que nos jogaram.
A
necessidade de tornar tudo um pouco mais lógico – o que de algum
modo equivale ao automático – me faz tentar criteriosamente o bom
susto que me pegou:
– De
agora em diante, me referindo à Terra, não direi mais
indiscriminadamente “o mundo”. “Mapa mundial”, considerarei
expressão não apropriada; quando eu disser “o meu mundo”, me
lembrarei com um susto de alegria que também meu mapa precisa ser
refundido, e que ninguém me garante que, visto de fora, o meu mundo
não seja azul. Considerações: antes do primeiro cosmonauta,
estaria certo alguém dizer, referindo-se ao próprio nascimento,
“vim ao mundo”. Mas só há pouco tempo nascemos para o mundo.
Quase encabulados.
– Para
vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha
do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou
uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.
– Se
eu fosse o primeiro astronauta, minha alegria só se renovaria quando
um segundo homem voltasse lá do mundo: pois também ele vira. Porque
“ter visto” não é substituível por nenhuma descrição: ter
visto só se compara a ter visto. Até um outro ser humano ter visto
também, eu teria dentro de mim um grande silêncio, mesmo que
falasse. Consideração: suponho a hipótese de alguém no mundo já
ter visto Deus. E nunca ter dito uma palavra. Pois, se nenhum outro
viu, é inútil dizer.
– O
grande favor do acaso: estarmos ainda vivos quando o grande mundo
começou. Quanto ao que vem: precisamos fumar menos, cuidar mais de
nós, para termos mais tempo e viver e ver um pouco mais; além de
pedirmos pressa aos cientistas – pois nosso tempo pessoal urge.
Clarice
Lispector,
in Todas as
crônicas
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