segunda-feira, 8 de junho de 2020

A perna de Ahab

 

A maneira precipitada com que o Capitão Ahab abandonara o Samuel Enderby, de Londres, não decorrera sem algum prejuízo para sua pessoa. Atirara-se com tal energia contra um banco de seu bote que sua perna de marfim sofreu um golpe que a trincou. E depois de ter chegado ao convés de seu navio, e a seu buraco de encaixe, virou-se com tanta veemência para dar uma ordem urgente ao timoneiro (era, como sempre, algo a propósito de ele não pilotar com suficiente rigor); e, assim, o marfim já avariado recebeu uma tal torcida e tranco adicionais, que, muito embora permanecesse inteiro, e a princípio firme, Ahab julgou não ser mais confiável.
De fato, não era surpreendente que, malgrado sua louca insensatez generalizada, por vezes Ahab prestasse grande atenção às condições daquele osso morto sobre o qual parte do seu corpo se apoiava. Pois, não muito tempo antes de o Pequod partir de Nantucket, ele fora encontrado certa noite estendido de bruços no chão e sem sentidos; por um acidente desconhecido e aparentemente inexplicável, sequer imaginável, a perna de marfim fora deslocada com tanta violência que o ferira, e, como uma estaca, quase perfurara sua virilha; e não foi sem extrema dificuldade que a ferida dolorosa se curou por inteiro.
Nem, àquelas alturas, deixou de passar por sua mente monomaníaca que toda a angústia de seu sofrimento fosse consequência direta de um infortúnio anterior; e ele parecia ver com clareza que, como o réptil mais venenoso do pântano perpetua sua espécie tão inevitavelmente quanto o cantor mais doce do bosque; assim também toda a desgraça, como a felicidade, gera naturalmente acontecimentos similares a si. Não exatamente como, pensou Ahab; já que a linhagem e a posteridade da Dor superam as da Alegria. Pois, para que não se subentenda isso: que se pode inferir de certos ensinamentos canônicos que alguns deleites naturais deste mundo não gerarão filhos no outro mundo, mas, ao contrário, devido à esterilidade da alegria, serão seguidos de todo o desespero infernal; ao passo que os fatais sofrimentos criminosos gerarão com fertilidade para além-túmulo uma prole eterna de tristezas sucessivas; para que não se subentenda isso, parece haver uma desigualdade, quando se analisa o assunto com profundidade. Pois, pensou Ahab, se mesmo na felicidade terrena mais elevada sempre existe oculta uma certa mesquinhez insignificante, enquanto, no fundo, todas as dores do coração escondem um significado místico e, em certos homens, uma grandeza angelical; assim, sua análise diligente não desmente a dedução óbvia. Percorrer a genealogia dessas altas misérias mortais nos conduz afinal às primogenituras sem origens dos deuses; de modo que, diante de todos os alegres sóis fecundos e das rotundas luas outonais, iluminando o suave farfalhar da colheita, é necessário dar-se conta disso: de que os próprios deuses nem sempre são felizes. O sinal de nascença, triste e indefectível na fronte do homem, é apenas a marca da tristeza dos que a imprimiram.
Por descuido foi divulgado um segredo, que talvez pudesse ter sido revelado antes de modo mais apropriado. Entre muitas outras particularidades atribuídas a Ahab, sempre permaneceu um mistério o porquê de, durante certo tempo, antes e depois da viagem no Pequod, ele se resguardar com a exclusividade digna de um Grande Lama; e de, durante esse período, ele buscar um refúgio taciturno, por assim dizer, no senado marmóreo dos mortos. A razão difundida pelo Capitão Peleg não pareceu adequada; embora, de fato, no que dizia respeito às profundezas de Ahab, toda revelação participasse mais de uma obscuridade significativa do que de uma claridade explicativa. Porém, no fim, tudo veio à tona; pelo menos, esse episódio. Havia uma desgraça atroz no fundo de sua reclusão temporária. Não apenas isso, mas para o grupo de homens da terra, sempre decrescente e minguante, que, por uma razão qualquer, tinha o privilégio de se aproximar dele com menos restrições; para esse pequeno grupo o acidente referido – que permaneceu, de fato, sem ser explicado por Ahab – se revestia de terror, não inteiramente dissociado da terra dos espíritos e dos lamentos. Por isso, por respeito a ele, todos conspiraram, tanto quanto puderam, para escamotear dos outros o conhecimento do caso; e assim foi, de modo que muito tempo se passou até que a notícia se espalhasse pelo convés do Pequod.
Mas seja lá como for; que o sínodo de ar, invisível e ambíguo, ou os príncipes vingativos e os soberanos do fogo, tenham ou não parte com o terrestre Ahab, fato é que, no caso presente de sua perna, ele recorreu a um simples procedimento prático – chamou um carpinteiro.
E, quando o funcionário se apresentou diante dele, ordenou-lhe que se pusesse sem demora a lhe fazer uma perna nova e orientou os imediatos para que lhe dessem todos os pinos e vigas das mandíbulas de marfim (do Cachalote) que tivessem até então sido acumulados durante a viagem, para que fosse feita uma escolha cuidadosa do material mais resistente e sólido. Feito isso, o carpinteiro recebeu ordens de terminar a perna naquela noite; e de providenciar todos os seus acessórios, independentemente dos que pertenciam à perna desacreditada ainda em uso. Além do mais, a forja do navio devia ser tirada do ócio temporário no porão; e, para acelerar as coisas, determinou-se que o ferreiro começasse de imediato a forjar os dispositivos de ferro que fossem necessários.
Herman Melville, in Moby Dick

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