sexta-feira, 29 de maio de 2020

Misto-Quente - 14



Mais tarde, no hospital, eles esfregavam meus joelhos com pedaços de algodão embebido em alguma coisa. Queimava. Meus cotovelos ardiam também.
O médico se curvava sobre mim, junto com uma en fermeira. Eu estava na cama, e a luz do sol entrava através da janela. Parecia muito agradável. O médico sorriu para mim. A enfermeira se endireitou e também me sorriu. Era legal estar ali.
Você tem um nome? – perguntou o médico.
Henry.
Henry do quê?
Chinaski.
Polonês, não é?
Alemão.
Por que ninguém quer ser polonês?
Nasci na Alemanha.
Onde você mora? – perguntou a enfermeira.
Com meus pais.
Sério? – perguntou o médico. – E onde fica isso?
O que aconteceu com meus joelhos e cotovelos?
Um carro o atropelou. Por sorte, as rodas não o pegaram. As testemunhas dizem que o motorista parecia bêbado. Atropelou e fugiu. Mas eles anotaram o número da placa. Dessa ele não escapa.
O senhor tem uma enfermeira muito bonita... – eu disse.
Bem, obrigada – ela disse.
Você quer marcar um encontro com ela? – perguntou o médico.
Como assim marcar um encontro?
Você quer sair com ela?
Não sei se conseguiria fazer com ela. Sou muito jovem.
Fazer o quê?
Você sabe.
Bem – sorriu a enfermeira –, venha me ver depois que seus joelhos sararem e veremos o que podemos fazer.
Me perdoe – disse o médico –, mas tenho que ver um outro caso de acidente.
Ele saiu do quarto.
Agora – disse a enfermeira –, em que rua você mora? – Na Estrada Virgínia.
Preciso do número, doçura.
Eu disse a ela o número da casa. Ela perguntou se lá havia telefone. Falei que não sabia o número.
Tudo bem – ela disse –, vamos dar um jeito de conseguir. E não se preocupe. Você teve sorte. Levou apenas uma pancada na cabeça e se arranhou um pouco.
Ela era bacana, mas eu sabia que depois que meus joelhos sarassem ela não ia querer me ver outra vez.
Quero ficar aqui – falei.
O quê? Está dizendo que não quer voltar para casa com seus pais?
Não. Deixa eu ficar aqui.
Não podemos fazer isso, doçura. Precisamos desses leitos para as pessoas que estão realmente doentes ou machucadas.
Sorriu e deixou o quarto.
Quando meu pai chegou, seguiu direto para meu quarto e, sem uma palavra, me arrastou para fora da cama. Carregou-me pelo corredor em direção ao hall.
Seu pequeno desgraçado! Não lhe ensinei a olhar para os DOIS lados antes de atravessar a rua?
Ele me levou até a recepção. Passamos pela enfermeira.
Adeus, Henry.
Adeus.
Entramos num elevador com um velho numa cadeira de rodas. Tinha uma enfermeira parada atrás dele. O elevador começou a descer.
Acho que vou morrer – disse o velho. – Não quero morrer. Tenho medo de morrer...
Você já viveu o bastante, velho cretino! – resmungou meu pai.
O velho olhou, espantado. O elevador parou. A porta continuou fechada. Então percebi o ascensorista. Estava sentado num banquinho. Era um anão vestido num resplandecente uniforme vermelho com um boné da mesma cor.
O anão olhou para meu pai.
Cavalheiro – ele disse –, o senhor é um sujeito repugnante!
Tampinha – replicou meu pai –, abra já essa merda de porta ou vou abrir é o seu cu.
A porta se abriu. Passamos pelo saguão. Meu pai me arrastou pelo gramado do hospital. Eu ainda usava o camisolão do hospital. Ele levava minhas roupas numa sacola. O vento soprou, erguendo meu camisolão, e pude ver meus joelhos esfolados, sem ataduras, apenas cobertos por iodo. Meu pai estava quase correndo pelo gramado.
Quando eles pegarem aquele filho-da-puta – ele disse –, vou processá-lo! Vou tirar até o último centavo! Ele vai me sustentar pelo resto da vida! Estou cansado daquele maldito caminhão de leite! Leiteria Golden State! Golden State o meu rabo cabeludo! Vamos nos mudar para os Mares do Sul. Vamos viver de cocos e abacaxis!
Meu pai chegou no carro e me colocou no assento da frente. Então ele entrou pelo lado do motorista. Deu a partida.
Odeio bêbados! Meu pai era um bêbado. Meus irmãos são bêbados. Bêbados são fracos. Bêbados são covardes. E esses que atropelam e fogem deveriam receber a prisão perpétua!
Enquanto seguíamos para casa ele continuava a falar comigo.
Você sabe que nos Mares do Sul os nativos moram em cabanas de palha? Eles se levantam pela manhã e a comida cai das árvores. Eles só pegam e comem, cocos e abacaxis. E os nativos acham que os homens brancos são deuses! Eles pescam, assam javalis, e as garotas dançam e vestem saias de palha e acariciam os homens atrás das orelhas. Leiteria Golden State o meu rabo cabeludo!
Mas o sonho do meu pai não iria se realizar. Eles pegaram o homem que me atropelou e o colocaram atrás das grades. Tinha mulher e três filhos e estava desempregado. Era um bêbado que não tinha nem onde cair morto. O homem ficou preso durante algum tempo, mas meu pai não apresentou queixa. Como ele disse:
Não se pode tirar leite de uma maldita pedra!
Charles Bukowski, in Misto-Quente

Nenhum comentário:

Postar um comentário