quinta-feira, 28 de maio de 2020

Da observação indireta

Não acredito em observação direta. Observação direta é reportagem — o lamentável equívoco dos naturalistas. Flaubert descrevia o vestuário de seus personagens — coisa que ao homem comum pouco importa. Ponha o leitor a mão na consciência ou no olho e veja se recorda hoje a cor do casaco da pessoa com quem falou ontem, ou no caso de um primeiro encontro, se o homem usava óculos ou tinha um bigodinho. Talvez eu esteja gabando minha deficiência. Confesso-me tão mau observador que, um dia destes, tendo sido depositado provisoriamente no quarto de banho do hotel um espelho de corpo inteiro, este, a quem nada escapa, revelou-me que eu não tenho uma coisa que todos têm, isto é: pelos nas axilas.
Ora, como a minha linguagem não é uma abstração algébrica, perguntarão como consigo escrever poemas, os quais, no seu estado mais puro, em vez de se expressarem por associações de ideias, expressam-se por imagens, figuras, coisas vistas... Mas foram vistas subliminarmente e depois, na montagem do poema, exsurgem num mundo mais real porque despojadas de acessórios insignificativos. Tanto assim que, dentre as coisas que mais agradaram a este escriba, está o testemunho de Donaldo Schüler: “M. Q. não cai nunca na facilidade do descritivo.”
Ah, as descrições! O que muito concorreu para o seu descrédito foi o cinema. Para que “ler” uma cascata, agora que as podemos “ver”? Também o cinema acabou com isso de abrir portas para entrar. Quando a gente vê, o personagem já está lá dentro! Só nos filmes de faroeste, por natureza tão primitivos, é que o herói monta no cavalo e apeia do mesmo, como se não bastasse mostrá-lo em plena cavalgada. E, como agora o substituto do cavalo é o automóvel, por que raios temos ainda de ver o mocinho entrar no carro e depois descer? Cavalo ou carro, o primitivismo é o mesmo. Mas eu estava falando era na observação indireta, por sinal que há tempos o título de um de meus futuros livros era O Viajante Adormecido. Só não o utilizei pelo receio de que o chamassem O Leitor Adormecido. Foi, como se vê, uma fraqueza que não me perdoo.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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