sábado, 4 de abril de 2020

Sétimo sapato: a ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros

Todos os dias recebemos estranhas visitas em nossa casa. Entram por uma caixa mágica chamada televisão. Criam uma relação de virtual familiaridade. Aos poucos passamos a ser nós quem acredita estar vivendo fora, dançando nos braços de Janet Jackson. O que os vídeos e toda a sub-indústria televisiva nos vêm dizer não é apenas “comprem”. Há todo um outro convite que é este: “sejam como nós”. Este apelo à imitação cai como ouro sobre azul: a vergonha de sermos quem somos é um trampolim para vestirmos esta outra máscara.
O resultado é que a nossa produção cultural se está convertendo na reprodução macaqueada da cultura dos outros. O futuro da nossa música poderá ser uma espécie de hip hop tropical, o destino da nossa culinária poderá ser o McDonald’s.
Falamos da erosão dos solos, da desflorestação, mas a erosão das nossas culturas é ainda mais preocupante. A secundarização das línguas moçambicanas (incluindo da língua portuguesa) e a ideia de que só temos identidade naquilo que é folclórico são modos de nos soprarem ao ouvido a seguinte mensagem: só somos modernos se formos americanos.
A nossa sociedade tem uma história similar à de um indivíduo. Ambos os percursos são marcados por rituais de transição: o nascimento, o fim da adolescência, o casamento, o fim da vida.
Olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: será que queremos realmente ser diferentes? Porque vejo que esses rituais de passagem se reproduzem como fotocópia fiel daquilo que sempre conheci na sociedade colonial. Estamos dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimônias de final do curso a partir de modelos europeus da Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinaldas e atiramos para longe da avenida Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimônia mais enraizada na terra e na tradição moçambicana.
Mia Couto, in Os sete sapatos sujos (Oração de Sapiência no ISCTEM, Maputo, 2006).

Nenhum comentário:

Postar um comentário