sábado, 4 de abril de 2020

O homem que as meninas idolatravam

O rei, viva o nosso rei. Rei, rei, rei.
O Rei, lá de cima, olhava. Abria os braços e elas gritavam. As meninas. Que tinham vindo de todos os pontos da cidade. Pobres e ricas. Tinham deixado suas casas, os empregos, as escolas. A cidade estava parada por causa do Rei. E ele sabia disso. Por isso sorria e abria os braços.
Viva o Rei, viva o Rei.
Mandara avisar a todos. Subira à sacada. A rua e os prédios estavam cheios. Era como um grande auditório. Havia brigas, palmas, gritos, choros, cantos, lamentos, uivos, histerismo, desmaios. Cantavam suas músicas. Havia conjuntos, orquestras, bandas. E as pajens, bem embaixo. Na porta do prédio. Fiéis. Via suas roupas coloridas, os cabelos compridos, ouvia os guizos das pulseiras. As pulseiras marca Rei. Via outras pajens, no meio da multidão, comprimidas, sem conseguirem furar o bloco de gente.
Para onde olhasse, o Rei via povo. Acenavam com os lenços. Choravam. Bobagem. Pra que chorar? Vou fazer isto porque amo vocês. Amo demais.
As mãos lá embaixo erguiam as imagens. Ele = bloquinhos de gesso branco. Seu rosto nas mãos das meninas, das mães, dos homens.
Rei, rei, abençoa, abençoa aqui.
Aqui.
Não aqui.
Aqui, rei.
Eu te amo, eu te amo.
Ele ergueu as mãos, abençoou. As pajens sacudiram os guizos e o som suave encheu a rua.
Os helicópteros desciam. Jogavam redes. Não me pegam. Os homens nos prédios em frente tentam me laçar. Eu rio deles. Não se laça um Rei. Não, não vou contar para vocês. Eu amo todo mundo. Mas ninguém me odeia. Eu me sufoco por ser tão amado.
Atirou para o ar um maço de fotos. Elas tinham o fundo prateado. O Rei se atirou também. Tudo flutuou no ar. O papel prateado brilhava ao sol. As pajens do Rei gritaram. Estavam alucinadas. O Rei gritou: Viva as minhas fãs. Eu vivo por vocês. Amo estas pajens.
E as pajens, firmes, à frente, enquanto o Rei descia. Rápido para elas; lento, uma eternidade para ele. O Rei, quando pequeno, na aula de educação física, saltava de cinco metros na lona. O professor mandava. Demorava muito para cair daquela altura.
Via os caminhões vermelhos furando lentamente a multidão. Mal se percebia se estavam andando. Fazia horas que os caminhões vermelhos dos bombeiros tinham aparecido no fim da rua. Não adiantava mais. Tiravam fotografias do prédio em frente, lá debaixo, de cada teto, de todos os edifícios. Lá em cima, tentavam arrombar. Fiz meu apartamento fortaleza. Minha porta de ferro onde nunca ninguém podia entrar.
A hora. Está chegando a hora. As pajens me esperam. Sempre me esperam, fiéis. Firmes nos auditórios, na compra dos discos, nas caravanas, nas estreias dos filmes. Com seus uniforminhos, ganhos no quarto de amor, que a companhia de decoração montou. Especial, cheio de bossas.
As faixas. Como tinham demorado a chegar. Mas quando chegaram, vieram aos montes. As faixas e fotografias e cartazes e as imagens de gesso. Tudo erguido para o alto.
As pajens começaram a aplaudir. Som das palmas e dos guizos das pulseiras Rei. E o Rei vinha voando. Parecia que vinha do céu, tão bonito ele vinha. Agora, as fotografias flutuavam acima dele, como uma nuvem prateada para proteger o Rei. Lindo, lindo, tudo que o Rei faz para nós é lindo, gritavam as pajens. Viva o Rei, o nosso Rei.
Não era publicidade, não era publicidade. A imprensa gritava.
Claro, ele não precisava mais de publicidade.
Foi amor, disse a velha, beijando a estatuetinha branca.
O Rei descia. Eu sempre quis voar, a vida inteira eu quis voar.
As mães choravam, alguns homens sorriam, os fotógrafos fotografavam, os laçadores guardavam os laços, o helicóptero subia, o carro de bombeiros desistia. Todos ficaram olhando para cima.
Para ele, a descida durou horas. Para a multidão, foi um raio. Caiu no meio das pajens. As pajens se atiraram. Beijaram o corpo. E começaram a arranhar a pulseira, o colar, o relógio, os anéis, o cinto, os botões da camisa, a botinha, as meias, a camisa rasgada em mil pedaços, a calça, a cueca.
E todo mundo quis. E todo mundo avançou. E todo mundo correu. E quando uns correram, os outros correram atrás, e a multidão inteira começou a correr. As pajens cantavam.
Viva nosso Rei.
Agora está no céu.
Os anjos estão contentes.
Nosso Rei canta para eles.
Os anjos.
Todos os anjos.
Louvem ao Rei para sempre.
Amém.
Cantavam, erguiam as faixas, mostravam os troféus. E corriam.
E ao correr pisavam o corpo do Rei, estendido na calçada. Do alto, ainda caíam as fotografias com fundo prateado.
Agora, estava escurecendo. E todos corriam pela rua, no meio dos prédios cinzentos, pisavam e repisavam o corpo do Rei. Que foi se transformando numa pasta. Cada vez mais fina.
Uma película apenas sobre a calçada. Pisavam sobre a película e ela se desmanchava. Mais e mais. Até que se dissolveu. Ficou apenas a mancha escura na calçada. Os sapatos pisavam a mancha, ainda úmida. E a mancha ia embora, aos poucos nos sapatos, sandálias, tênis, pés da multidão que corria para um ponto qualquer da cidade. Lá da frente, muito à frente, vinha o canto das pajens.
O Rei está com Deus.
Deus ouve o Rei cantar.
Agora, a calçada estava limpa, a rua vazia, nas árvores havia fotografias enroscadas nos galhos. O povo, longe, corria.
Sem saber para onde.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas

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