A
afirmação de que a religião é uma ferramenta utilizada para
preservar a ordem social e organizar uma cooperação em grande
escala pode aborrecer aqueles para a qual ela representa um caminho
espiritual. Contudo, assim como a brecha entre religião e ciência é
mais estreita do que em geral se pensa, da mesma forma a brecha entre
religião e espiritualidade é muito mais ampla. Religião é um
trato, enquanto espiritualidade é uma jornada.
A
religião provê uma descrição completa do mundo e nos oferece um
contrato bem definido, com objetivos predeterminados. “Deus existe.
Ele nos disse que nos comportássemos de certas maneiras. Se você
obedecer a Deus, será admitido no céu. Se Lhe desobedecer, queimará
no inferno.” A simples clareza desse contrato permite à sociedade
definir normas e valores comuns que regulam o comportamento humano.
Jornadas
espirituais não se assemelham a nada disso. Elas levam as pessoas
por caminhos misteriosos em direção a destinos desconhecidos. A
busca geralmente começa com alguma pergunta profunda, tal como:
“Quem sou eu?”, “Qual é o sentido da vida?”, “O que é o
bem?”. Enquanto a maioria das pessoas simplesmente aceita as
resposta predefinidas fornecidas pelas forças dominantes, aquelas
que buscam a espiritualidade não se satisfazem tão facilmente.
Estão determinadas a sair em busca da grande questão, aonde quer
que isso as leve, e não só a lugares que conhecem bem ou que querem
visitar. Assim, para muita gente os estudos acadêmicos são um
trato, e não uma jornada espiritual, porque eles nos levam a
objetivos predeterminados aprovados por nossos pais, governos e
bancos. “Vou estudar três anos, passar nos exames, obter meu
bacharelado e me garantir com um emprego seguro e bem pago.”
Estudos acadêmicos poderiam transformar-se em uma jornada espiritual
se as questões com que deparássemos no caminho nos desviassem rumo
a destinos inesperados de cuja existência quase não tínhamos noção
no começo. Por exemplo, uma estudante poderia começar a estudar
economia com o objetivo de conseguir um emprego em Wall Street.
Contudo, se esse estudo a induzisse, de alguma maneira, a ir parar
num eremitério hindu ou a dar assistência a pacientes com HIV no
Zimbábue, poderíamos chamar isso de jornada espiritual.
Por
que rotular tal viagem como “espiritual”? Isso é um legado de
antigas religiões dualistas que acreditavam na existência de dois
deuses, um do bem e outro do mal. Segundo o dualismo, o deus do bem
criou almas puras e eternas que viviam num bem-aventurado mundo do
espírito. No entanto, o deus do mal — às vezes chamado de Satã —
criou outro mundo, feito de matéria. Satã não sabia o que fazer
para que sua criação durasse, por isso no mundo da matéria tudo
apodrece e se desintegra. Para insuflar vida em sua criação
defeituosa, Satã tentava as almas do mundo puro do espírito e as
confinava em seus corpos materiais. Como a alma aprisionada — o
corpo — decai e posteriormente morre, Satã seduz a alma com
delícias corporais, sobretudo com comida, sexo e poder. Quando o
corpo se desintegra e a alma tem a oportunidade de fugir, retornando
ao mundo espiritual, seu desejo de prazeres corporais a leva de volta
para dentro de algum novo corpo material. A alma, assim, se
transmigra de corpo em corpo, desperdiçando seu tempo em busca de
comida, sexo e poder.
O
dualismo instrui as pessoas a romper essas cadeias materiais e
empreender uma jornada de volta ao mundo espiritual, que nos é
totalmente desconhecido, mas também nossa verdadeira moradia.
Durante essa busca, temos de rejeitar todas as tentações e tratos
materiais. Em razão do legado dualista, toda jornada na qual
duvidemos das convenções e dos tratos do mundo terreno e nos
aventuremos em direção a um destino desconhecido é chamada de
“jornada espiritual”.
Essas
jornadas são fundamentalmente diferentes de religiões porque estas
buscam consolidar o mundano, enquanto a espiritualidade busca fugir
dele. Com frequência, uma das mais importantes obrigações dos
errantes da espiritualidade é desafiar as crenças e convenções
das religiões dominantes. No zen-budismo diz-se: “Se você deparar
com Buda na estrada, mate-o”. Isso significa que, quando estiver
andando pelo caminho espiritual, se deparar com as ideias rígidas e
as leis fixas do budismo institucionalizado, deve livrar-se delas
também.
Para
as religiões, a espiritualidade é uma ameaça perigosa.
Tipicamente, as religiões empenham-se para controlar as buscas
espirituais de seus seguidores, e muitos sistemas religiosos são
desafiados não por pessoas laicas preocupadas com comida, sexo e
poder, e sim por buscadores da verdade espiritual que esperavam mais
do que esses lugares-comuns. Assim, a revolta protestante contra a
autoridade da Igreja católica não foi inflamada por ateus
hedonistas, mas por um monge devoto e ascético, Martinho Lutero. Ele
queria respostas para as questões existenciais da vida e se recusou
a se conformar aos ritos, rituais e tratos oferecidos pela Igreja.
Na
época de Lutero, a Igreja prometia a seus seguidores alguns acordos
realmente muito sedutores. Se você tivesse pecado, e temesse a
danação eterna no pós-vida, tudo o que precisava fazer era abrir a
bolsa e comprar uma indulgência. No início do século XVI, a Igreja
empregava “mascates da salvação”, que perambulavam pelas
cidades e aldeias da Europa e vendiam indulgência a preço fixo.
Quer um visto de entrada para o céu? Pague dez moedas de ouro. Quer
que o vovô Henrique e a vovó Gertrude, já falecidos, se juntem a
você lá? Não tem problema, mas isso vai lhe custar trinta moedas.
Alega-se que o mais famoso desses mascates, o frade dominicano
Johannes Tetzel, dizia que, no momento em que a moeda tilinta na
caixa de coleta, a alma voa do purgatório para o céu.
Quanto
mais Lutero pensava a respeito, mais duvidava desse trato e da Igreja
que o oferecia. Não se pode simplesmente comprar o caminho para a
salvação. Não era possível que o papa tivesse autoridade para
perdoar as pessoas por seus pecados e para abrir-lhes as portas do
céu. Segundo a tradição protestante, em 31 de outubro de 1517
Lutero caminhou até a igreja de Todos os Santos, em Wittenberg,
levando consigo um longo documento, um martelo e alguns pregos. O
documento listava 95 postulados contra práticas religiosas
contemporâneas, inclusive contra a venda de indulgências. Lutero
pregou o documento na porta da igreja e assim desencadeou a Reforma
Protestante, que conclamava todo cristão que se importava com sua
salvação a se rebelar contra a autoridade do papa e procurar rotas
alternativas para o céu.
De
uma perspectiva histórica, a jornada espiritual é sempre trágica,
pois é um caminho solitário apenas para indivíduos e não para
sociedades inteiras. A cooperação humana requer respostas firmes e
não somente perguntas justas, e aqueles que se enfurecem contra
estruturas religiosas insensatas frequentemente acabam forjando novas
estruturas em seu lugar. Isso aconteceu com os dualistas, cujas
jornadas espirituais se tornaram estamentos religiosos. Isso
aconteceu com Martinho Lutero, que, depois de desafiar as leis, as
instituições e os rituais da Igreja católica, escreveu novos
livros de leis, fundou novas instituições e inventou novas
cerimônias. Isso aconteceu até mesmo com Buda e Jesus. Em sua busca
intransigente da verdade, eles subverteram as leis, os rituais e as
estruturas do hinduísmo e do judaísmo tradicionais. No entanto,
ulteriormente mais leis, mais rituais e mais estruturas foram criados
em seu nome do que em nome de qualquer outra pessoa na história.
Yuval
Noah Harari, in
Homo
Deus: Uma breve história do amanhã
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