quinta-feira, 23 de abril de 2020

Se você deparar com Buda

A afirmação de que a religião é uma ferramenta utilizada para preservar a ordem social e organizar uma cooperação em grande escala pode aborrecer aqueles para a qual ela representa um caminho espiritual. Contudo, assim como a brecha entre religião e ciência é mais estreita do que em geral se pensa, da mesma forma a brecha entre religião e espiritualidade é muito mais ampla. Religião é um trato, enquanto espiritualidade é uma jornada.
A religião provê uma descrição completa do mundo e nos oferece um contrato bem definido, com objetivos predeterminados. “Deus existe. Ele nos disse que nos comportássemos de certas maneiras. Se você obedecer a Deus, será admitido no céu. Se Lhe desobedecer, queimará no inferno.” A simples clareza desse contrato permite à sociedade definir normas e valores comuns que regulam o comportamento humano.
Jornadas espirituais não se assemelham a nada disso. Elas levam as pessoas por caminhos misteriosos em direção a destinos desconhecidos. A busca geralmente começa com alguma pergunta profunda, tal como: “Quem sou eu?”, “Qual é o sentido da vida?”, “O que é o bem?”. Enquanto a maioria das pessoas simplesmente aceita as resposta predefinidas fornecidas pelas forças dominantes, aquelas que buscam a espiritualidade não se satisfazem tão facilmente. Estão determinadas a sair em busca da grande questão, aonde quer que isso as leve, e não só a lugares que conhecem bem ou que querem visitar. Assim, para muita gente os estudos acadêmicos são um trato, e não uma jornada espiritual, porque eles nos levam a objetivos predeterminados aprovados por nossos pais, governos e bancos. “Vou estudar três anos, passar nos exames, obter meu bacharelado e me garantir com um emprego seguro e bem pago.” Estudos acadêmicos poderiam transformar-se em uma jornada espiritual se as questões com que deparássemos no caminho nos desviassem rumo a destinos inesperados de cuja existência quase não tínhamos noção no começo. Por exemplo, uma estudante poderia começar a estudar economia com o objetivo de conseguir um emprego em Wall Street. Contudo, se esse estudo a induzisse, de alguma maneira, a ir parar num eremitério hindu ou a dar assistência a pacientes com HIV no Zimbábue, poderíamos chamar isso de jornada espiritual.
Por que rotular tal viagem como “espiritual”? Isso é um legado de antigas religiões dualistas que acreditavam na existência de dois deuses, um do bem e outro do mal. Segundo o dualismo, o deus do bem criou almas puras e eternas que viviam num bem-aventurado mundo do espírito. No entanto, o deus do mal — às vezes chamado de Satã — criou outro mundo, feito de matéria. Satã não sabia o que fazer para que sua criação durasse, por isso no mundo da matéria tudo apodrece e se desintegra. Para insuflar vida em sua criação defeituosa, Satã tentava as almas do mundo puro do espírito e as confinava em seus corpos materiais. Como a alma aprisionada — o corpo — decai e posteriormente morre, Satã seduz a alma com delícias corporais, sobretudo com comida, sexo e poder. Quando o corpo se desintegra e a alma tem a oportunidade de fugir, retornando ao mundo espiritual, seu desejo de prazeres corporais a leva de volta para dentro de algum novo corpo material. A alma, assim, se transmigra de corpo em corpo, desperdiçando seu tempo em busca de comida, sexo e poder.
O dualismo instrui as pessoas a romper essas cadeias materiais e empreender uma jornada de volta ao mundo espiritual, que nos é totalmente desconhecido, mas também nossa verdadeira moradia. Durante essa busca, temos de rejeitar todas as tentações e tratos materiais. Em razão do legado dualista, toda jornada na qual duvidemos das convenções e dos tratos do mundo terreno e nos aventuremos em direção a um destino desconhecido é chamada de “jornada espiritual”.
Essas jornadas são fundamentalmente diferentes de religiões porque estas buscam consolidar o mundano, enquanto a espiritualidade busca fugir dele. Com frequência, uma das mais importantes obrigações dos errantes da espiritualidade é desafiar as crenças e convenções das religiões dominantes. No zen-budismo diz-se: “Se você deparar com Buda na estrada, mate-o”. Isso significa que, quando estiver andando pelo caminho espiritual, se deparar com as ideias rígidas e as leis fixas do budismo institucionalizado, deve livrar-se delas também.
Para as religiões, a espiritualidade é uma ameaça perigosa. Tipicamente, as religiões empenham-se para controlar as buscas espirituais de seus seguidores, e muitos sistemas religiosos são desafiados não por pessoas laicas preocupadas com comida, sexo e poder, e sim por buscadores da verdade espiritual que esperavam mais do que esses lugares-comuns. Assim, a revolta protestante contra a autoridade da Igreja católica não foi inflamada por ateus hedonistas, mas por um monge devoto e ascético, Martinho Lutero. Ele queria respostas para as questões existenciais da vida e se recusou a se conformar aos ritos, rituais e tratos oferecidos pela Igreja.
Na época de Lutero, a Igreja prometia a seus seguidores alguns acordos realmente muito sedutores. Se você tivesse pecado, e temesse a danação eterna no pós-vida, tudo o que precisava fazer era abrir a bolsa e comprar uma indulgência. No início do século XVI, a Igreja empregava “mascates da salvação”, que perambulavam pelas cidades e aldeias da Europa e vendiam indulgência a preço fixo. Quer um visto de entrada para o céu? Pague dez moedas de ouro. Quer que o vovô Henrique e a vovó Gertrude, já falecidos, se juntem a você lá? Não tem problema, mas isso vai lhe custar trinta moedas. Alega-se que o mais famoso desses mascates, o frade dominicano Johannes Tetzel, dizia que, no momento em que a moeda tilinta na caixa de coleta, a alma voa do purgatório para o céu.
Quanto mais Lutero pensava a respeito, mais duvidava desse trato e da Igreja que o oferecia. Não se pode simplesmente comprar o caminho para a salvação. Não era possível que o papa tivesse autoridade para perdoar as pessoas por seus pecados e para abrir-lhes as portas do céu. Segundo a tradição protestante, em 31 de outubro de 1517 Lutero caminhou até a igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, levando consigo um longo documento, um martelo e alguns pregos. O documento listava 95 postulados contra práticas religiosas contemporâneas, inclusive contra a venda de indulgências. Lutero pregou o documento na porta da igreja e assim desencadeou a Reforma Protestante, que conclamava todo cristão que se importava com sua salvação a se rebelar contra a autoridade do papa e procurar rotas alternativas para o céu.


De uma perspectiva histórica, a jornada espiritual é sempre trágica, pois é um caminho solitário apenas para indivíduos e não para sociedades inteiras. A cooperação humana requer respostas firmes e não somente perguntas justas, e aqueles que se enfurecem contra estruturas religiosas insensatas frequentemente acabam forjando novas estruturas em seu lugar. Isso aconteceu com os dualistas, cujas jornadas espirituais se tornaram estamentos religiosos. Isso aconteceu com Martinho Lutero, que, depois de desafiar as leis, as instituições e os rituais da Igreja católica, escreveu novos livros de leis, fundou novas instituições e inventou novas cerimônias. Isso aconteceu até mesmo com Buda e Jesus. Em sua busca intransigente da verdade, eles subverteram as leis, os rituais e as estruturas do hinduísmo e do judaísmo tradicionais. No entanto, ulteriormente mais leis, mais rituais e mais estruturas foram criados em seu nome do que em nome de qualquer outra pessoa na história.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário