quinta-feira, 23 de abril de 2020

Lições erradas

Dividimos a história em eras, com começo e fim bem definidos, e mesmo que a ordem seja imposta depois dos fatos — a gente vive para a frente mas compreende para trás, ninguém na época disse “Oba, começou a Renascença!” — é bom acreditar que os fatos têm coerência, e sentido, e lições. Mas podemos apreender a lição errada.
A gente fala nos loucos anos 20, quando várias liberdades novas começavam a ser experimentadas, e esquece que foi a era que gerou o fascismo e outras formas liberticidas. O espírito da “era do jazz” de Scott Fitzgerald foi o espírito totalitário. Prevaleceram não os passos do charleston, mas os passos de ganso.
A leitura convencional dos anos 40 é que foram os anos em que os Estados Unidos salvaram a Europa dela mesma. Na verdade, a Segunda Guerra salvou os Estados Unidos. Completou o trabalho do New Deal de Roosevelt e acabou com a crise econômica que sobrara dos anos 30, fortalecendo a sua indústria ao mesmo tempo que os poupava da destruição que liquidou com a Europa, e inaugurou o keynesianismo militar que mantém a sua economia saudável até hoje. O fim da Segunda Guerra foi o começo da era americana. Os americanos salvaram o mundo — e ficaram com ele.
Os plácidos e sem graça anos 50 não foram tão aborrecidos assim. Foram os anos do “existencialismo”, de revoluções na arte e na literatura, do nascimento do rock-n’-roll... Já nos fabulosos anos 60, enquanto as drogas, o sexo e a comunhão dos jovens pela paz e contra tudo o que era velho tomavam conta das praças e das ruas, o conservadorismo careta se entrincheirava no poder — Nixon nos Estados Unidos, os generais aqui —, e Margaret Thatcher começava a sua própria revolução. O que foi que aconteceu mesmo nos anos 60?
Quando fizerem a leitura do fim dos anos 90 e da era que começa com 00, qual será a conclusão errada? A de que o mundo está se tornando mesmo uma aldeia global dominada pela técnica ou que está se dividindo cada vez mais entre ricos e pobres, entre inteligência artificial e fundamentalismo, misticismo e outras formas de burrice manobrável e espoliável? E no Brasil? O que foi que nos aconteceu?
Em 30 anos, quando não adiantar mais nada, saberemos.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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