Aos
nove anos, eu era quase analfabeto. E achava-me inferior aos Mota
Lima, nossos vizinhos, muito inferior, construído de maneira
diversa. Esses garotos, felizes, para mim eram perfeitos: andavam
limpos, riam alto, frequentavam escola decente e possuíam máquinas
que rodavam na calçada como trens. Eu vestia roupas ordinárias,
usava tamancos, enlameava-me no quintal, engenhando bonecos de barro,
falava pouco.
Na
minha escola de ponta de rua, alguns desgraçadinhos cochilavam em
bancos estreitos e sem encosto, que às vezes se raspavam e lavavam.
Nesses dias nós nos sentávamos na madeira molhada. A professora
tinha mãe e filha. A mãe, caduca, fazia renda, batendo os bilros,
com a almofada entre as pernas. A filha, mulata sarará enjoada e
enxerida, nos ensinava as lições, mas ensinava de tal forma que
percebemos nela tanta ignorância como em nós. Perto da mesa havia
uma esteira, onde as mulheres se agachavam, cortavam panos e cosiam.
D.
Agnelina rezingava com a filha por questões de namoro e, em caso de
necessidade, administrava-lhe corretivos. Uma vez discutiram a
respeito da palavra auréola, que surgiu na minha seleta. A moça
acertou, mas D. Agnelina, debruando um vestido, julgou auréola
equivalente a debrum, estirou o beiço e, depois de hesitar,
misturando baixinho auréola com ourela recomendou-me que, para
evitar dúvidas, dissesse auréola.
O
lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco
horas de suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara
de um, roendo o canto do olho, entrando no olho. E o olho sem se
mexer, como se o menino estivesse morto. Não há prisão pior que
uma escola primária do interior. A imobilidade e a insensibilidade
me aterraram. Abandonei os cadernos e as auréolas, não deixei que
as moscas me comessem. Assim, aos nove anos ainda não sabia ler.
Ora,
uma noite, depois do café, meu pai me mandou buscar um livro que
deixara na cabeceira da cama. Novidade: meu velho nunca se dirigia a
mim. E eu, engolido o café, beijava-lhe a mão, porque isto era
praxe, mergulhava na rede e adormecia. Espantado, entrei no quarto,
peguei com repugnância o antipático objeto e voltei à sala de
jantar. Aí recebi ordem para me sentar e abrir o volume. Obedeci
engulhando, com a vaga esperança de que uma visita me interrompesse.
Ninguém nos visitou naquela noite extraordinária.
Meu
pai determinou que eu principiasse a leitura. Principiei. Mastigando
as palavras, gaguejando, gemendo uma cantilena medonha, indiferente à
pontuação, saltando linhas e repisando linhas, alcancei o fim da
página, sem ouvir gritos. Parei surpreendido, virei a folha,
continuei a arrastar-me na gemedeira, como um carro em estrada cheia
de buracos.
Com
certeza o negociante recebera alguma dívida perdida: no meio do
capítulo pôs-se a conversar comigo, perguntou-me se eu estava
compreendendo o que lia. Explicou-me que se tratava de uma história,
um romance, exigiu atenção e resumiu a parte já lida. Um casal com
filhos andava numa floresta, em noite de inverno, perseguido por
lobos, cachorros selvagens. Depois de muito correr, essas criaturas
chegavam à cabana de um lenhador. Era ou não era?
Traduziu-me
em linguagem de cozinha diversas expressões literárias. Animei-me a
parolar. Sim, realmente havia alguma coisa no livro, mas era difícil
conhecer tudo.
Alinhavei
o resto do capítulo, diligenciando penetrar o sentido da prosa
confusa, aventurando-me às vezes a inquirir. E uma luzinha quase
imperceptível surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas
trevas do meu espírito.
Recolhi-me
preocupado: os fugitivos, os lobos e o lenhador agitaram-me o sono.
Dormi com eles, acordei com eles. As horas voaram. Alheio à escola,
aos brinquedos de minhas irmãs, à tagarelice dos moleques, vivi com
essas criaturas de sonho, incompletas e misteriosas.
À
noite meu pai me pediu novamente o volume, e a cena da véspera se
reproduziu: leitura emperrada, mal-entendidos, explicações.
Na
terceira noite fui buscar o livro espontaneamente, mas o velho estava
sombrio e silencioso.
E
no dia seguinte, quando me preparei para moer a narrativa, afastou-me
com um gesto, carrancudo. Nunca experimentei decepção tão grande.
Era como se tivesse descoberto uma coisa muito preciosa e de repente
a maravilha se quebrasse. E o homem que a reduziu a cacos, depois de
me haver ajudado a encontrá-la, não imaginou a minha desgraça. A
princípio foi desespero, sensação de perda e ruína, em seguida
uma longa covardia, a certeza de que as horas de encanto eram boas
demais para mim e não podiam durar.
Findas,
porém, as manifestações secretas de mágoa, refleti, achei que o
mal tinha remédio e expliquei o negócio a Emília, minha excelente
prima. O rosto sereno, largos olhos pretos, um ar de seriedade —
linda moça. A irmã, brincalhona e rabugenta, ora pelos pés, ora
pela cabeça, ria como doida e logo explodia em acessos de cólera.
Mas Emília não era deste mundo. Só se zangou comigo uma vez, no
dia em que, tuberculosa, me viu beber água no copo dela.
Graciliano
Ramos, in Infância
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