A
casa, construída há séculos, ou pelo menos há sessenta anos,
tinha uma curiosidade: o cofre de aço embutido na parede, com
fechadura de segredo.
Ninguém
tomava conhecimento da peça; as joias da nova dona eram poucas e não
exigiam tamanho resguardo; e o dinheiro do dono cabia folgadamente no
bolso, esse cofre sem segredo dos pobres.
Com
o tempo, aquilo foi esquecido. Mas um dia, o menino de fora
instalou-se na casa, para passar férias e empreender algumas
demolições. Findos os atrativos da primeira semana, aquele dínamo
em forma de gente começou a explorar o desconhecido, e, à noite,
descobriu o cofre, dissimulado por trás de um quadrinho a óleo.
— Vô,
quero abrir esse cofre.
— Menino,
deixa o cofre sossegado.
— Como
é que você deixa um cofre trancado esse tempo todo, sem ver o que
tem dentro?
— Não
tem nada.
— Deixa
ver.
— Perdi
a chave, depois eu procuro.
— Não,
é agora.
— Sei
lá onde eu botei a explicação do segredo.
— Procura
também. Se não achar, a gente roda o botão até descobrir como é
que é.
Para
escapar a uma chateação, o jeito é nos resignarmos a outra. Os
troféus foram encontrados depois de intensa busca: a chave, numa
pirâmide de coisas enferrujadas, que toda casa conserva sem objetivo
aparente; a explicação, dentro da lista amarela de telefones, que
se consulta quando se quer comprar não se sabe o que a não se sabe
quem, não se sabe onde.
— Fique
quietinho aí que eu vou abrir esse cofre para você ver.
— Mas
eu queria…
— Menino!
Você não se enxerga?
O
homem subiu à mesa, tirou o abajur para ver melhor. Sentou-se,
acocorou-se, ajoelhou-se, transpirou. Nada. Os números do botão
móvel do cofre estavam apagados pelo tempo, a vista do Homem era
curta, cansada.
— Meu
pai me contou que os ladrões usam talco — informou o garoto.
— Besteira.
Em todo caso, me arranje a lata de talco.
Pois
não é que clareia mesmo, aviva os números?
— Onde
que teu pai aprendeu essa malandragem?
— Meu
pai sabe, ora.
O
Homem cumpriu religiosamente os itens da explicação da Casa
Vulcano: três voltas para a direita, parar no 25, uma volta para a
esquerda, parar no 37, voltar novamente para a direita até encontrar
o 12. Nada. Com o calor e a luz no rosto, era de amargar.
O
menino sorria:
— Você
não está vendo que esse cofre não pode abrir porque foi pintado a
óleo e as frinchas estão tapadas?
— É
mesmo, confessa o Homem. Não tinha reparado. Agora me lembro que
quando mandei pintar a casa… Com uma gilete eu raspo isso.
Vendo
que gilete não resolvia, e antes que o Homem, já nervoso, ficasse
sem dedo, o garoto apareceu com uma raspadeira fina e um martelo.
— Experimenta
isso, vô. É mais prático.
Era.
Mas uma ponta da raspadeira, manejada pela mão inábil do Homem,
quebrou-se e ficou no interstício, atrapalhando.
— Por
hoje chega, sabe? Amanhã mando chamar o serralheiro para ver essa
porcaria. E o senhor aí vá dormir, que não é hora de menino de
nove anos ficar acordado.
Era
tão absurdo ir para a cama, diante de um cofre rebelde, que a
resposta do garoto foi voltar à caixa de ferramentas, tirar um
pequeno alicate e dizer:
— Deixa
por minha conta.
Subiu
à mesa com ar resoluto, acenou para o Homem: “Afasta”, e, num
gesto leve, fisgou a pontinha encravada. Verificando que os espaços
estavam desobstruídos, fez girar a maçaneta. O cofre abriu-se
docilmente, como uma blusa.
Dentro,
no meio de cartas e programas antiquíssimos de cinema, tinha um
dólar de prata, de 1920.
— É
meu — disse o vencedor, embolsando-o imediatamente. Para espanto do
Homem, que jamais soubera existir na parede de sua casa um dólar de
prata.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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