sexta-feira, 17 de abril de 2020

Duplas

Alguém, algum dia, deveria fazer um estudo aprofundado sobre o Amigo do Herói, aquela figura que, desde Sancho Panza, atravessa as narrativas do Ocidente em várias formas, mas com certas características reincidentes. Ele é sempre um suberói, inferior de algum jeito ao herói. Ou é seu criado (Sancho escudeiro de Dom Quixote, o negro enorme que fazia o trabalho braçal para o Mandrake e se chamava como?), ou é seu parceiro porém mais “primitivo” (Tonto com relação ao Zorro), mais burro ou ingênuo (o Magro, Jerry Lewis, Bud Abbot — ou o gordinho era o Lou Costelo?), mais adolescente (Robin, o Centelha companheiro do Tocha Humana) etc. Nos velhos filmes de caubói sempre havia o gozadão amigo do mocinho. O que representa a figura? É o sucedâneo do amigo imaginário que muitos têm na infância, existe apenas como um contraste para realçar as virtudes do herói ou uma plateia sempre pronta para adorá-lo, seria o lado humano, falível ou ridículo do herói transposto para outro, ou ali tem coisa e — segundo a moda de análises mais recente — todas são claramente relações homossexuais disfarçadas? A coabitação de Sherlock Holmes e Watson sobreviveu à era vitoriana e edwardiana sem levantar suspeitas, mas não resistiu ao psicologismo moderno, o mesmo que questionou o número de vezes em que o Gordo e o Magro apareciam na mesma cama e acabou com a inocência no mundo, e dizem que falta pouco para o Batman e o Robin assumirem. Enfim, respostas com quem se animar a fazer o estudo aprofundado.
Uma vez o Walmor Chagas me pediu uma peça para ele e o Italo Rossi, e inventei uma história em que, por algum artifício teatral que não lembro mais, duplas famosas se misturavam em cena. Sherlock Holmes aprendendo a viver com “Centelha” (“Acenda meu cachimbo, sim, rapaz?”), Watson se esforçando para acompanhar o ritmo de Batman (“Meu velho, será que não tem um calçãozinho um pouco maior?”), Sancho Panza se convencendo de que em matéria de patrões estranhos o Tocha Humana deixava Dom Quixote longe, Robin tentando inutilmente mobilizar o Gordo para a luta contra o Mal, Tonto perdendo a paciência com Mandrake (“Cara pálida tira cigarro aceso do ouvido de Tonto mais uma vez, leva bordoada”), Dom Quixote e Dean Martin não encontrando assunto... Como as combinações eram improváveis, a peça também tinha o Marquês de Sade recebendo herr Sacher-Masoch em casa e sendo um anfitrião perfeito, inclusive derramando o chá fervendo no seu pulso em vez de na sua xícara.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

Nenhum comentário:

Postar um comentário