Desistir
de Diadorim, foi o que eu falei? Digo, desdigo. Pode até ser, por
meu desmazelo de contar, o senhor esteja crendo que, no arrancho do
acampo, eu pouco visse Diadorim, amizade nossa padecesse de descuido
ou míngua. O engano.Tudo em contra. Diadorim e eu, a gente parava em
som de voz e alcance dos olhos, constante um não muito longe do
outro. De manhã à noite, a afeição nossa era duma cor e duma
peça. Diadorim, sempre atencioso, esmarte, correto em seu bom
proceder. Tão certo de si, ele repousava qualquer mau ânimo. Por
que é, então, que eu salto isso, em resumo, como não devia de,
nesta conversa minha abreviã? Veja o senhor, o que é muito e mil!
estou errando. Estivesse contando ao senhor, por tudo, somente o que
Diadorim viveu presente mim, o tempo ― em repetido igual, trivial ―
assim era que eu explicava ao senhor aquela verdadeira situação de
minha vida. Por que é, então, que deixo de lado? Acho que o
espírito da gente é cavalo que escolhe estrada! quando ruma para
tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom. Seja? E,
aquele Garanço, olhe! o que eu dele disse, de bondade e amizade, não
foi estrito. Sei que, naquela vez, não senti. Só senti e achei foi
em recordação, que descobri, depois, muitos anos. Coitado do
Garanço, ele queria relatar, me falava: ― Fui almocreve, no
Serém.Tive três filhos... Mas, que sorte de jagunço recluta era
ele ― assim meninoso, jalôfo e bom. ― Eta, e você já matou
seus muitos homens, Garanço? ― pois perguntei. O riso dele ficava
querendo ser mais grosso: ― Eh, eh, nós... Sou algum medroso? E
mecê encomenda o quê, no rifle que está em minha mão, mano velho!
Eh, não desprevino, não lhe envergonho o desse... O Garanço, mesmo
afirmo, acho que nunca duvidou de coisa nenhuma. Toda tardeza dele
não deixava. E só. Comum de benquistar e malquistar.
O
senhor entenderá? Eu não entendo. Aquele Hermógenes me fazia
agradados, demo que ele gostava de mim. Sempre me saudando com
estimação, condizia um gracejo amistoso ou umas boas palavras, nem
parecia ser o bedegueba. Por cortesia e por estatuto, eu tinha de
responder. Mas, em mal. Me irava. Eu criava nôjo dele, já disse ao
senhor. Aversão que revém de locas profundas. Nem olhei nunca nos
olhos dele. Nôjo, pelos eternos ― razão de mais distâncias.
Aquele homem, para mim, não estava definitivo. E arre que ele não
desconfiava, não percebia! Queria conversa, me chamava; eu tinha de
ir ― ele era o chefe. Fiquei de ensombro. Diadorim notou; me deu
conselho: ― Modera esse gênio que você tem, Riobaldo. As pessoas
não são tão ruins agrestes. ― Dele não me temo! ― eu
respondi. Eu podia xingar com os olhos. Aí, o Hermógenes me
presenteou com um nagã, e caixas de balas. Estive para nem aceitar.
Eu já possuía revólver meu, carecia algum daquele, de tanto só
cano, tão enorme? Por insistências dele, mesmo, com aquilo fiquei.
Cuspi, depois. Dado que eu nunca ia retribuir! Queria eu lá viver
perto de chefes? Careço é de pousar longe das pessoas de mando,
mesmo de muita gente conhecida. Sou peixe de grotão. Quando gosto, é
sem razão descoberta, quando desgosto, também. Ninguém, com
dádivas e gabos, não me transforma. Aquele Hermógenes era matador
― o de judiar de criaturas filhos-de-deus ― felão de mau. Meus
ouvidos expulsavam para fora a fala dele. Minha mão não tinha sido
feita para encostar na dele. Ah, esse Hermógenes ― eu padecia que
ele assistisse neste mundo... Quando ele vinha conversar comigo, no
silêncio da minha raiva eu pedia até ao demônio para vir ficar de
permeio entre nós dois, para dele me apartar. Eu podia rechear de
balas aquele nagã próprio, e descarregar nele tiros, entre os todos
olhos. O senhor tolere e releve estas palavras minhas de fúria; mas,
disto, sei, era assim que eu sentia, sofria. Eu era assim. Hoje em
dia, nem sei se sou assim mais.
Do
ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se
tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte. Coração
cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por
entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura
amores.Tudo cabe. Conforme contei ao senhor, quando Otacília comecei
a conhecer, nas serras dos gerais, Buritís Altos, nascente de
vereda, Fazenda Santa Catarina. Que quando só vislumbrei graça de
carinha e riso e boca, e os compridos cabelos, num enquadro de
janela, por o mal acêso de uma lamparina. Mas logo fomos para
acomodar, numa rebaixa de engenho-de-pilões, lá pernoitamos. Eu,
com Diadorim, Alaripe, João Vaqueiro e Jesualdo, e o Fafafa. No que
repontávamos de dura viagem! tudo o que era corpo era bom cansaço.
Mas eu dormi com dois anjos-da-guarda.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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