domingo, 22 de março de 2020

Pergaminho das Admoestações - Pintura oriunda da China, 500-900 D.C.

Depois de banquetes e sexo gay nos primórdios do império romano, de fumo e cerimônias na América do Norte, de jogos de pelota e crenças no México, deparamos agora com outro tipo de prazer social elaborado: a contemplação da pintura. Quero observar especificamente uma obra-prima da pintura da China, em forma de rolo, baseada num original pintado por volta dos anos 400 ou 500 d.C. Ela compreende três formas de arte distintas, conhecidas liricamente na China como as “três perfeições”: pintura, poesia e caligrafia. Por ser um rolo manual, era para ser vista na companhia de amigos e, como bela obra de arte, foi apreciada por imperadores durante centenas de anos. É conhecida como As Admoestações da Preceptora às Damas da Corte, ou Pergaminho das Admoestações, e é uma espécie de cartilha antiga de boas maneiras, e sobretudo de conduta moral, para as damas da corte chinesa: ensina às mulheres poderosas como devem se comportar.
 


O imperador rejeita sua esposa. Eis a tradução dos versos: Ninguém agrada para sempre; / Afeição não pode ser para um só; / Se for, acabará em desgosto. / Quando o amor atinge o clímax muda de objeto; / Pois tudo que alcança a plenitude começa a declinar. / Esta lei é absoluta. / A “bela esposa que se sabe bela” / Logo era odiada. / Se com ar afetado tentas agradar, / Os homens sensatos te abominarão. / Vem daí, certamente, / A quebra dos laços de favoritismo.

Um tema comum nos objetos que descrevi nos últimos capítulos tem sido a mudança de atitudes em relação àquilo que constitui uma forma aceitável de prazer. Em diferentes épocas da história do mundo, o tempero se tornou vício — ou vice-versa. Mas apreciar uma obra de arte como o Pergaminho das Admoestações sempre foi inteiramente aceitável, e o próprio objeto traz o registro daqueles que, ao longo dos séculos, tiveram a sorte de vê-lo e apreciá-lo.
O rolo está entregue aos cuidados de um estúdio do British Museum especializado em conservação de pinturas do Leste Asiático, onde a pintura pode ser toda estendida — ela tem quase 3,5 metros de comprimento. Sua criação envolveu artistas de diferentes períodos e desde que foi concluída tem sido continuamente apreciada e preservada. O ponto de partida foi um longo poema escrito pelo cortesão Zhang Hua em 292 d.C. Mais ou menos um século mais tarde, por volta do ano 400, uma famosa pintura — agora tida como perdida — incorporou o poema. É provável que o Pergaminho das Admoestações tenha sido terminado uns duzentos anos depois, mas ele copiou e capturou tão fielmente o espírito da grande pintura original que muitos até acreditam que esta talvez seja a obra original. Seja qual for sua condição exata, este pergaminho é um dos exemplos mais consagrados das primeiras pinturas chinesas que chegaram até nós.
Cerca de metade dele é composta de cenas pintadas, separadas uma da outra por versos. À medida que o desenrolamos, vamos lendo o poema e vendo uma cena de cada vez; desenrolar é parte essencial do prazer. Um dos quadros mostra um episódio perturbador. Uma bela e sedutora mulher do harém da corte aproxima-se do imperador. Suas túnicas e faixas vermelhas ondulantes lhe acentuam os movimentos enquanto ela segue, balançando e flertando, em direção ao homem. Porém, olhando com mais atenção, vemos que na verdade ela vacila: é detida pelo braço estendido e pela mão do imperador, erguidos num inequívoco gesto de rejeição. O imperador está acima do desejo carnal. O corpo dela se contorce enquanto começa a recuar, e seu rosto estampa a expressão de uma vaidade perplexa e frustrada.
Quando Zhang Hua escreveu o poema em 292 d.C., a China passava por um período de fragmentação, após o colapso do império Han. Forças rivais disputavam a supremacia, fazendo constantes ameaças de destronar o imperador. Ele era deficiente mental, por isso sua mulher, a imperatriz Jia, acumulou grande poder, que utilizava espetacularmente mal. De acordo com uma história escrita na época, Zhang Hua, que era ministro da corte, ficava cada dia mais horrorizado com a usurpação da autoridade do imperador por ela e seu clã; a imperatriz ameaçava a estabilidade da dinastia e do Estado por meio de assassinatos, intrigas e tumultuosos relacionamentos sexuais. A intenção explícita de Zhang Hua ao escrever era instruir todas as mulheres da corte, mas seu alvo principal era a própria imperatriz. Ele esperava que, usando o veículo belo e inspirador da poesia, pudesse conduzir sua governante extraviada de volta à correção moral, ao comedimento e ao decoro:

Mantenha guarda atentamente sobre sua conduta;
Pois disso virá a felicidade.
Cumpra suas obrigações com calma e respeito;
Assim conquistará glória e honra.

A pintura que ilustra esse poema também tem um elevado objetivo moral. Embora se destinem às mulheres, as lições aplicam-se igualmente aos homens. O imperador, quando se recusa a ser seduzido por sua vaidosa mulher, dá um exemplo de discernimento e força masculinos. O Dr. Shane McCausland, renomado especialista nos primórdios da pintura chinesa, estudou minuciosamente o Pergaminho das Admoestações:

É sobre crítica positiva. O artista não tenta dizer às pessoas o que não devem fazer, e sim como fazer algo da melhor forma. Cada cena descreve maneiras de as damas da corte aperfeiçoarem sua conduta, seu comportamento, seu caráter. A admoestação, na verdade, diz respeito a aprender, a aperfeiçoar-se; mas, para isso, se o público já possui uma fama ruim, o autor precisa injetar muita graça e muito humor no que diz. Foi exatamente o que ele fez. Tem bastante a ver com dignidade real, com tradição do estadismo, com governo baseado em princípios. É um retrato inspirado e revelador das interações inerentes à função de governar.

Infelizmente, a imperatriz Jia era inacessível à mensagem moral do poema e prosseguiu em suas escandalosas proezas sexuais e atividades sanguinárias. Parte de sua brutalidade talvez fosse justificável, uma vez que havia rebeldes empenhados em provocar uma guerra civil, até que, enfim, no ano 300, um golpe foi bem-sucedido. A imperatriz foi presa e obrigada a cometer suicídio.
Um século depois, por volta do ano 400, a corte foi afligida pelos mesmos problemas. Certa vez o imperador Xiaowudi comentou com sua consorte favorita: “Agora que você tem trinta anos, é hora de trocá-la por alguém mais jovem.” Era um gracejo, mas ela não gostou nem um pouco e o matou naquela noite. A corte ficou escandalizada. Sem dúvida era tempo de lembrar a todos como deviam se comportar, reeditando o poema de Zhang Hua num rolo pintado pelo maior artista do momento, Gu Kaizhi. A obra-prima resultante é o Pergaminho das Admoestações. A Dra. Jan Stuart, curadora do Departamento da Ásia no British Museum, conhece muito bem esta pintura e seus objetivos:

O pergaminho encaixa-se numa tradição de imagens didáticas estabelecida na dinastia Han e influenciada pelo grande filósofo Confúcio. Lendo o texto junto com as imagens, percebe-se que uma profunda mensagem está sendo transmitida. Confúcio acreditava que todos têm uma função e um lugar específicos na sociedade, e, se isso for respeitado, garante-se uma sociedade muito saudável e eficaz. A mensagem deve ter tido especial importância na época do poema que serviu de base para este pergaminho. Diz a mensagem que a mulher, mesmo quando possui grande beleza, deve sempre demonstrar humildade, obedecer às regras e jamais esquecer sua posição em relação ao marido e à família; assim agindo, será uma força positiva e ativa na promoção da ordem social.




 Uma dama corre para salvar o imperador de um urso feroz

No Pergaminho das Admoestações lê-se que uma dama jamais deve explorar os hábitos ou as fraquezas de seu homem. Só deve ficar na frente do imperador se for para protegê-lo de um perigo. Outra cena do pergaminho ilustra um acontecimento real, em que um feroz urso-negro escapou da jaula durante uma apresentação para o imperador e as damas do harém. Nessa cena em particular, veem-se primeiro duas damas fugindo do animal e olhando para trás horrorizadas. Em seguida, vê-se o imperador sentado, paralisado de espanto, e diante dele uma valorosa dama que em vez de fugir correu para se colocar entre o imperador e o urso, que pula diante dela, rosnando ferozmente. Mas o imperador está são e salvo. Esse, diz-nos a pintura, é o tipo de sacrifício de que necessitamos e que esperamos de nossas grandes damas.
Este pergaminho tornou-se objeto de estima de muitos imperadores, que talvez vissem nele um instrumento útil para ajudar a acalmar esposas e amantes difíceis, mas também admiravam sua grande beleza e colecionavam esta preciosa obra-prima para mostrar que eram culturalmente astutos e poderosos. Sabemos bem em quais cortes ele foi visto, porque cada governante imperial deixou sua marca, na forma de um selo cuidadosamente colocado nos espaços em branco em torno das pinturas e da caligrafia. Alguns dos donos anteriores também tinham acrescentado seus próprios comentários. Isso produz uma espécie de deleite que nunca se tem diante de uma pintura europeia: a sensação de compartilhar o prazer que se sente com pessoas de séculos passados, de participar de uma comunidade de perspicazes conhecedores de arte que têm amado esta pintura através dos séculos. Por exemplo, o imperador Qianlong, do século XVIII — contemporâneo de George III —, assim resume sua avaliação do pergaminho:

A pintura Admoestações da Preceptora, de Gu Kaizhi, com texto. Autêntica relíquia. Tesouro de divina qualidade pertencente ao Palácio Interno.

Era uma relíquia tão apreciada que poucas pessoas tinham acesso a ela. Isso ainda vale, mas por outra razão: a seda em que está pintada sofre muito quando exposta à luz e, portanto, é delicada demais para ficar em exposição, a não ser muito raramente. Mas, embora não seja permitido imprimirmos nela nosso selo ou o registro de nosso prazer, graças à moderna tecnologia de reprodução podemos nos juntar ao imperador Qianlong e às outras pessoas que ao longo das décadas têm se deliciado com a contemplação do Pergaminho das Admoestações. Graças à internet, o prazer que era reservado à corte imperial chinesa tornou-se universal.
Neil MacGregor, in A história do mundo em 100 objetos

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