Em
1898, um obscuro escritor norte-americano, Morgan Robertson, publicou
um romance intitulado “Futility or The Wreck of the Titan”
(Futilidade ou o naufrágio do Titan). Robertson, que, na sua
juventude, trabalhara em navios, como moço de cabine, conta no livro
a história de um enorme transatlântico, o Titan, considerado
inafundável, o qual, na sua primeira viagem, bate contra um iceberg
e afunda. Quatorze anos mais tarde, um gigantesco navio de
passageiros, o Titanic, bateu contra um iceberg e afundou, dando
origem a um dos mais fascinantes mitos da História moderna.
Lembrei-me
de Morgan Robertson na sequência da atual pandemia de coronavírus,
e de uma breve troca de mensagens com o escritor português Gonçalo
M. Tavares. “Por ironia trágica estou há anos a escrever um livro
enorme, chamado ‘A peste nos Estados Unidos da América’, uma
epopeia”, revelou Gonçalo. Quanto a mim, concluí nos últimos
dias do ano passado um novo romance, “Os vivos e os outros”, no
qual imagino um grupo de escritores que, na sequência de uma
tempestade e, logo a seguir, de um evento apocalíptico, permanece
isolado numa pequena ilha da costa oriental de África, a Ilha de
Moçambique.
Gonçalo
não se surpreende: “Essas coisas andam no ar”, diz. Penso o
mesmo. Escritores, e criadores em geral, são simples antenas. Captam
o que anda no ar.
Há
alguns anos, o escritor moçambicano Mia Couto contou-me uma história
de que gosto muito. O meu amigo terminara de escrever “Antes de
nascer o mundo” (Companhia das Letras, 2009), romance no qual conta
a história de Silvestre, um homem desiludido com a humanidade, que
arrasta os dois filhos para uma região isolada porque, diz-lhes, o
mundo acabou. O livro estava pronto, mas ainda não fora publicado,
quando Mia recebeu uma proposta de trabalho, enquanto biólogo, que
implicava uma viagem pelo interior do país. Numa aldeia remota
encontrou um velho que lhe disse ser cego. Na manhã seguinte, porém,
Mia encontrou-o a ler. “Mas você não me disse que era cego?”,
perguntou-lhe. E o homem respondeu: “Só não sou cego enquanto
leio.”
Na
verdade, não tenho a certeza se a ficção adivinha o futuro, ou se,
pelo contrário, o constrói. Esta é, aliás, a tese do meu novo
romance. O que faço, afinal, é levar a sério a primeira frase de
um dos livros mais lidos (e, provavelmente, menos compreendidos) do
mundo — a Bíblia. “No príncípio era a palavra”, afirma a
Bíblia. Ou seja, antes do real, existia a palavra. É a palavra que
cria a realidade.
Os
magos, ou xamãs, em todas as culturas ao redor do globo, antes e
depois da afirmação do cristianismo, acreditam no mesmo. Não por
acaso, a poesia começou por ser uma disciplina da magia. A palavra
evoca os deuses, dá existência a seres e a objetos. A palavra cria
e descria os enredos, desenha a linha do tempo.
O
momento que vivemos inquieta porque não conseguimos ver para além
da montanha. Sim, sobreviveremos à pandemia. Mas sobreviveremos ao
que vem depois?
Talvez
a resposta já tenha sido dada, algures, por algum escritor. Também
por isso, nada melhor do que aproveitar os dias de isolamento para
ler. Ler, aliás, é a melhor maneira de contrariar o isolamento.
Leitores não são ilhas. São universos em expansão.
José
Eduardo Agualusa, in www.oglobo.com
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