quarta-feira, 4 de março de 2020

Minha irmã natural

Tínhamos feito diversas viagens à fazenda de meu avô. Naquela, a mais importante, demoramos três meses — e a família ganhou um membro, perdeu outro.
O ganho foi representado por um menino chorão, que morreu cedo. Minha mãe deitou-se na cama de lastro de couro cru, exilaram-me algumas horas no bosque de catingueiras, à beira da lagoa. Quando voltei, o pequeno estava nos cueiros, de figa no braço, defumado a alfazema, e submetia-se às predições de Maria Melo. Tudo se normalizou: minha mãe convalesceu, os capões que engordavam no cercadinho do oitão, pegado ao jardim, morreram. A pessoa que desapareceu da família foi Mocinha. Não sei bem se desapareceu da família, mas é certo que nos deixou. Talvez não a julgassem parenta: as relações dela conosco eram imprecisas. Antes de meu pai casar, Mocinha lhe fora enviada por portas travessas, passara às mãos de tia Dona, viúva pobre que vivia com ele e tinha duas filhas novas. Viera o casamento, viera a mudança, tia e primas se haviam distanciado e Mocinha nos acompanhara ao sertão.
Era branca e forte, de olhos grandes, cabelos negros, tão bonita que duvidei ser do meu sangue. Parece que não queriam tomar conhecimento dela. Aferrolhavam-na em camarinha tenebrosa. Natural: sempre tivemos camarinhas úmidas, tristes, seguras, fechadas, para as mulheres. Sentava-se a uma canto da mesa, rezava, comia de cabeça baixa. O constrangimento devia torturá-la, pois no quintal, na cozinha, no alpendre, ria, cantava, entendia-se com Rosenda lavadeira. Do corredor para a sala de visitas encolhia-se, reprimia expansões, anulava-se.
Minha mãe tratava-a quase cerimoniosamente. Às vezes embirrava com ela, resmungava, largava muxoxos — e nós, viventes fracos, meninos e moleques, observávamos apreensivos essas manifestações, de agouro ruim. A Mocinha não chegavam dissabores. Era como estranha, hóspeda permanente, embora se entretivesse em serviços leves: bordava palmas e florinhas lentas em pedaços de morim estendidos em grades, remendava camisas, endurecia saias brancas na goma anilada, alisava-as a ferro numa tábua vestida em lençol, suspensa nos encostos de duas cadeiras.
Isso lhe bastava à necessidade de movimento. E as exigências do espírito satisfaziam-se com missas, novenas, terços de maio, conversas na prensa do copiar, leitura do romance longo, a história de Adélia e D. Rufo. Na verdade Mocinha era meio analfabeta, mas a narrativa, pisada e repisada, já não apresentava obstáculo; Adélia e D. Rufo mostravam-se. As excelências de D. Bosco, expostas nos folhetos amarelos dos Salesianos, é que se traduziam com esforço e incerteza.
Ao levantar-se e antes de encafuar-se no quarto sombrio, que tinha apenas uma abertura, Mocinha se aproximava de meu pai, cochichava rapidamente. Ele rosnava uma benção, afastava se carrancudo. Aquilo era uni dever, dever tradicional que o lisonjeava e diminuía.
Provavelmente a situação do negócio (gado a morrer, pano barato na prateleira) não lhe permitia engendrar filhos em muitas barrigas, fortalecer-se com o trabalho deles. Reprodutor mesquinho, sujeitava-se à moral comum — e naquela bênção engrolada ao amanhecer e ao cair da noite havia a confissão de que lhe faltava o direito de cobrir muitas mulheres, gerar descendência numerosa.
Cobria e gerava, mas devagar e com método. Era um patriarca refletido e oblíquo, escriturava zeloso os seus escorregos sentimentais. Mocinha não representava utilidade. Valor estimativo, de origem pecaminosa. E meu pai tentava convencer os outros de que ela não existia.
Difícil. A intrusa se encorpava e embelezava, alargava a roupa, namorava-se ao espelho da sala. E do espelho saltou à janela, onde Miguel lhe foi segredar ternuras ao lusco-fusco.
Miguel, indivíduo importante, dos mais importantes do lugar, não podia ligar-se decentemente a uma filha das ervas. A gente dele, proprietária da casa de azulejos, motivo do meu assombro ao apear-me na vila, estrilou. E meu pai estrilou também, considerável e cheio de prosápias, orgulhando-se daquela preferência, mas rigoroso, intransigente. Fecharam-se e fiscalizaram-se as venezianas; estorvaram-se as relações com o exterior; a menina, elevada à categoria de pessoa, ouviu grilos, censuras ásperas, e as duas bênçãos diárias nunca mais lhe foram concedidas.
Pensei mais tarde nas razões que levaram meu pai a repelir um sujeito de boa raça, influente na política local. Talvez desejasse evitar falatórios, que lhe causavam medo. Talvez receasse assumir responsabilidade, ir até o fim do caminho. Nunca se comportava assim. Ordinariamente parava, ocupado com minúcias, e no jogo do solo, o seu divertimento no inverno, passava demais, enchia o pires de tentos, só se arriscava quando os trunfos lhe choviam nas mãos. Temia vantagens, desconfiava dos lucros rápidos e fáceis, que exigem capital e coragem — e após o desastre na fazenda, bichos famintos, morrinha, destruição, tornara-se precavido em excesso. Realmente era ambicioso, mas a sua ambição voava curto. Leve amor às aventuras e riscos, aventuras e riscos medianos, o induzia a vender fiado. Tomava todas as precauções, estudava o freguês pelo direito e pelo avesso, duplicava o preço da mercadoria, e se a fatura se elevava um pouco, suava numa angústia verdadeira. Findos os noventa dias do prazo, esfolava o devedor com juro de dois por cento ao mês. É possível que, nesse caso afetivo, ele haja, adotando os seus hábitos comerciais, procedido economicamente. Se acolhesse as boas intenções de Miguel, precisaria mandar fazer enxoval, comprar malas, realizar uma festa com anúncio em banhos, cerimônia de igreja, música, jantar para dezenas de convidados. Viriam Padre João Inácio, o Comendador Badega, Seu Félix Cursino, Teotoninho Sabiá, Filipe Benício. Teríamos discursos, teríamos dança. Esses desarranjos, além de caros, não estavam na índole de meu pai. Desorganizar-lhe-iam a vida. A nossa mesa era exígua, ladeada de bancou duros. Com os anos, aumentou, recebeu hóspedes numerosos, mas naquele tempo em geral se acomodavam em redor dela seis ou oito pessoas. E na sala de visitas, retirados o marquesão e as cadeiras, poucos pares conseguiriam mexer-se. Meu pai detestava a dança, formalidade necessária em bodas. Certamente se lembrava de culpas nascidas na valsa e na quadrilha — e daí o horror. Havia na existência dele, no escuro do passado, uma Deolinda, a que minha mãe se referia com inveja.
Deolinda surgira escandalosamente na quadrilha e na valsa, traíra o marido — e, em consequência, meu pai reprovava com energia o exercício abominável. Minha mãe esqueceu a reprovação e cometeu uma falta: dançou com um primo barbado, em casa de meu avô. Arrependeu-se, achegou-me ao peito magro, pediu-me que não revelasse a ninguém o desgraçado sucesso. Comprometi-me. Quando nos desaviemos, ameacei-a. Não ligou importância às ameaças: puxou-me as orelhas. Senti a perfídia, mas fui generoso, guardei o segredo. E a paz do casal não se alterou.
Deolinda se esfumara. E, na frieza, Mocinha bordava palmas e flores, engomava saias, ouvia missas. No romance extenso e amarfanhado travara conhecimento com D. Rufo e Adélia. E transformava Miguel num virtuoso galã.
O nosso governo totalitário admitia Adélia e D. Rufo, mas não admitia Miguel.
Não tentava suprimir a ficção contida nos volumes sujos. Consentia a leitura, reconhecendo a inutilidade dela fora do artigo político e dos lançamentos do borrador. Mas, deixando à menina o direito de pensar em tipos de histórias, decidiu conservá-la na virgindade. Obrigava-se a alimentá-la por largos anos, vesti-la, calçá-la. Isto representava uma despesa pingada, quase insensível. Gastos extraordinários — lençóis, fronhas, camisas, o vestido branco, véu, grinalda, fita, renda, muita comida, muita bebida, música etc. — perturbar-lhe-iam as finanças. Tia Dona arranjara um casamento infeliz, enviuvara, tuberculosa, com duas filhas. Tia Josefa envelhecia longe, solteira. Tia Jovina envelhecia também, e ainda envelhece, coxa e triste, em companhia da última de minhas irmãs naturais. Meu pai distribuía migalhas a essas pobres. Continuaria a sustentar Mocinha, contanto que ela procedesse direito, vivesse calma, na gaiola e na moral.
Fervia nela, porém, o sangue materno, a solidão afligia-a. E Miguel não queria ser figura de romance. Entenderam-se, apesar da proibição, inflamaram-se, cambiaram acenos e bilhetes. E tudo se resolveu.
A gente de meu avô se reunia na sala, em torno da mesa que tinha nas gavetas bolas de cera e macetes de capar boi, e em cima, na glória, litografias e esculturas, Jesus e a Virgem, santos e santas. Minha mãe embalava o filho novo na rede, junto à cama de lastro de couro cru, à luz da lamparina que esmorecia no copo. Maria Melo puxava a ladainha. O patrão, o velho cabreiro Ciríaco, diversos apaniguados, abatiam-se rezando, os joelhos sobre chapéus de couro. A patroa, caboclas da vizinhança, as negras da cozinha, sucumbidas na esteira, esmurravam o peito e cantavam. Os meus olhos doídos e purulentos escondiam-se num pano preto, lacrimejavam, enxergavam a custo vultos indecisos, as labaredas trêmulas das velas. Fragmentos do exterior confuso entravam-me nos ouvidos. Os armadores da rede calaram-se, as vozes enfraqueceram, a ladainha findou, as mulheres ergueram-se num frufru amarrotado, alpercatas e chinelos arrastaram-se, o clarão do oratório morreu, as paredes sem reboco enegreceram mais.
Súbito, um rebuliço: Mocinha estava sumida. Procuraram-na por todos os cantos; as tochas dos candeeiros do querosene iluminaram os quartos, o depósito do algodão, o quintal, o bosque de catingueiras, o pátio; os gritos de meu avô ecoaram nas ribanceiras do Ipanema. Não se descobriu Mocinha. lia piada por vários cavaleiros, num simulacro de força e conquista, foi, em conformidade com a praxe, acolhida e vigiada por senhoras idosas. Nesse asilo nenhum mal lhe chegaria, mas estabeleceu-se que moça fugida é moça avariada.
Para sanar a avaria absurda, medianeiros verbosos diligenciaram um conchavo entre as duas famílias. Houve as conversações usuais e o acordo não se realizou. Meu pai conservou-se intransigente e digno. Ao regressar à vila, achei-o com a barba crescida, afirmando que a ingrata significava para ele mão cortada. Frase esquisita. Efetivamente nunca a pequena lhe servira de mão. Meu pai era assim: gostava de expressões enfáticas e não reparava no sentido das palavras. Mão cortada. Essa amputação o eximia de banhos, véu, grinalda, renda, fita, lençóis, fronhas, jantar. Mocinha casou silenciosamente, sem música e sem dança, na missa das sete. E teve alguns anos de equilíbrio e felicidade.
Tentou reconciliar-se conosco. Enquanto meu pai jogava solo na loja, entrava pelo portão do quintal, ficava uma hora falando baixo com minha mãe, na prensa de farinha do alpendre.
Depois veio a mudança e nos distanciamos. Miguel abandonou-a, ligou-se a outra, no civil. Se não me engano, ligou-se também a uma índia, na lei dos índios, para as bandas do Amazonas. Mocinha desapareceu e não deixou vestígio.
Graciliano Ramos, in Infância

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