A
já, que ia membora, fugia. Onde é que estava Diadorim? Nem eu não
imaginava que pudesse largar Diadorim ali. Ele era meu companheiro,
comigo tinha de ir. Ah, naquela hora eu gostava dele na alma dos
olhos, gostava ― da banda de fora de mim. Diadorim não me
entendeu. Se engrotou.
Assaz,
também, acho que me acuso: que não tive um ânimo de franco falar.
Se fosse eu falasse total, Diadorim me esbarrava, no tolher, não me
entendia. A vivo, o arisco do ar: o pássaro ― aquele poder dele.
Decerto vinha com o nome de Joca Ramiro! Joca Ramiro... Esse nem a
gente conseguia exato real, era um nome só, aquela graça, sem
autoridade nenhuma avistável, andava por longe, se era que andava.
Teve um instante, bambeei bem. Foi mesmo aquela vez? Foi outra?
Alguma, foi; me alembro. Meu corpo gostava de Diadorim. Estendi a
mão, para suas formas; mas, quando ia, bobamente, ele me olhou ―
os olhos dele não me deixaram. Diadorim, sério, testalto.Tive um
gelo. Só os olhos negavam. Vi ― ele mesmo não percebeu nada. Mas,
nem eu; eu tinha percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostava
do corpo dele, na sala do teatro. Maiormente. As tristezas ao redor
de nós, como quando carrega para toda chuva. Eu podia pôr os braços
na testa, ficar assim, lôrpa, sem encaminhamento nenhum. Que é que
queria? Não quis o que estava no ar; para isso, mandei vir uma ideia
de mais longe. Falei sonhando! ― Diadorim, você não tem, não
terá alguma irmã, Diadorim? ― voz minha; eu perguntei.
Sei
lá se ele riu? O que disse, que resposta? Sei quando a amargura
finca, o que é o cão e a criatura. De tristeza, tristes águas,
coração posto na beira. Irmã nem irmão, ele não tinha! ― Só
tenho Deus, Joca Ramiro... e você, Riobaldo... ― ele declarou. Hê,
de medo, coração bate solto no peito; mas de alegria ele bate
inteiro e duro, que até dói, rompe para diante na parede. ―
Diadorim, então quem foi esse moço Leopoldo, que morreu seu amigo?
― eu indaguei, de sem-tempo, nem sei porque; eu não estava
pensando naquilo. Antes já eu estava para trás de ter perguntado,
palavras fora da boca. ― Leopoldo? Um amigo meu, Riobaldo, de
correta amizade... ― e Diadorim desfez assoprado um suspiro, o que
muda melhor. ― Até te falaram nele, Riobaldo? Leopoldo era o irmão
mais novo de Joca Ramiro... Aquilo, eu já soubesse demais ― que
Joca Ramiro se realçasse por riba de tudo, reinante. Mas pude ter a
língua sofreada. ― Vamos embora daqui, juntos, Diadorim? Vamos
para longe, para o porto do de-Janeiro, para o sertão do baixío,
para o Curralim, São-Gregório, ou para aquele lugar nos gerais,
chamado Os-Porcos, onde seu tio morava... De arrancar, de meu falar,
de uma sede. Aos tantos, fui abaixando os olhos ― constando que
Diadorim me agarrava com o olhar, corre que um silêncio de ferro.
Assombrei de mim, de desprezo, desdenhado, de duvidar da minha razão.
O que eu tinha falado era umas doideiras. Diadorim esperou. Ele era
irrevogável. Então, eu saí dali, querendo esquecer ligeiro o
atual. Minha cara estava pegando fogo.
Andei,
em dei, até que lembrei: o Garanço. Bom, o Garanço, esse ia
comigo, me seguia em tudo, era pobre homem à espera de qualquer
ordem cordial. Isto ele mesmo nem sabia, mas era: que carecia era de
alguma amizade. Estava lá, curvado, cabeçudo como uma cigarra.
Estava cozinhando pequís, numa lata. ― Eh, eh, nós!... ― ele
assim dizia. Ladeei conversa. Ele me ouvia, com anuídos, e fazendo
uma cara de entender. Não conseguia. Só conseguia demonstrar os
tamanhos de sua cabeça. Ao que bastava um meu maior cochicho, e o
Garanço vinha, servia de companheiro para fugirmos. O mais que
pudesse haver, era ele primeiro perguntar: ― E o Reinaldo? ―;
porque já estava acostumado com eu e Diadorim sermos dois, e ele
querer ser o três. Então, eu respondi: ― Segredo, eh, Garanço.
Segredo, eh, e vamos! ― e que Diadorim era para vir depois. O
Garanço tinha alguma diferença, por alguma banda de sua natureza
ele se desapartava da jagunçagem.
Mas
eu não cheguei a falar, não quis, não expliquei nada. Que era que
eu ia fazer, às fugas com aquele prascóvio, pelo sul e pelo norte,
nos sertões da Jaíba? Ele só sabia cumprir obediência, no que eu
riscasse, governado por meu querer e por minha ideia; um companheiro
assim não aumentava segurança minha nenhuma. Quero sombra? Quero
éco? Quero cão? Não, com ele eu não me fazia, melhor esperar; eu
ia ficando. Desse no que desse; mais um tempo. Algum dia, podia
Diadorim mudar de tenção. Em Diadorim era que eu pensava, de fugir
junto com ele era que eu carecia; como o rio redobra. O Garanço se
regalava com os pequís, relando devagar nos dentes aquela polpa
amarela enjoada. Aceitei não, daquilo não provo! por demais
distraído que sou, sempre receei dar nos espinhos, craváveis em
língua. ―Eh,eh, nós... ― o Garanço reproduzia, tão
satisfeito. Minha amizade sobrou um pouco para ele, que era criatura
de simples coração. Digo ao senhor! naquele dia eu tardava, no meio
de sozinha travessia.
Ah,
mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é
muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas
pela astúcia que têm certas coisas passadas ― de fazer balancê,
de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria
sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas
coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado. Se eu fosse filho de
mais ação, e menos ideia, isso sim, tinha escapulido, calado, no
estar da noite, varava dez léguas, madrugava, me escondia do largo
do sol, varava mais dez, passava o São Felipe, as serras, as
Vinte-e-Uma-Lagoas, encostava no São Francisco bem de frente da
Januária, passava, chegava em terra cidadã, estava no pique. Ou me
pegassem no caminho, bebelos ou hermógenes, me matassem? Morria com
um bé de carneiro ou um áu de cão; mas tinha sido um mais destino
e uma mór coragem. Não valia? Não fiz. Quem sabe nem pensei sério
em Diadorim, ou, pensei algum, foi em vezo de desculpa. Desculpa para
meu preceito, mesmo. Quanto pior mais baixo se caíu, maismente um
carece próprio de se respeitar. De mim, toda mentira aceito. O
senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao
que fugi até da precisão de fuga.
As
razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas terríveis
dificuldades; certamente, meiamente. Como ia poder me distanciar
dali, daquele ermo jaibão, em enormes voltas e caminhadas,
aventurando, aventurando? Acho que eu não tinha conciso medo dos
perigos: o que eu descosturava era medo de errar ― de ir cair na
boca dos perigos por minha culpa. Hoje, sei: medo meditado ― foi
isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha
paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse
medo-de-errar, a gente estava salva. O senhor tece? Entenda meu
figurado. Conforme lhe conto: será que eu mesmo já estava pegado do
costume conjunto de ajagunçado? Será, sei. Gostar ou não gostar,
isso é coisa diferente. O sinal é outro. Um ainda não é um:
quando ainda faz parte com todos. Eu nem sabia. Assim que o Paspe
tinha agulhas grandes, fio e sovela: consertou minhas alpercatas.
Lindorífico me cedeu, por troco de espórtula, um bentinho com
virtudes fortes, dito de sãossalavá e cruz-com-sangue. E o Elisiano
caprichava de cortar e descascar um ramo reto de goiabeira, ele que
assava a carne mais gostosa, as beiras tostadas, a gordura chiando
cheio. E o Fonfrêdo cantava lôas de não se entender, o Duvino de
tudo armava risada e graça, o Delfim tocando a viola, Leocádio
dansava um valsar, com o Diodôlfo; e Geraldo Pedro e o Ventarol que
queriam ficar espichados, dormindo o tempo todo, o Ventarol roncasse
― ele possuía uma rede de casamento, de bom algodão, com chuva de
rendas rendadas... Aí e o Jenolim e o Acrísio, e João Vaqueiro,
que depunham por mim com uma estima diferente, só porque se tinha
viajado juntos, vindo do das-Velhas: ― Viva, companheiro
tropeiro... ― saudavam. Ao que se jogava truque, e douradinha e
douradão, por cima de couros de rês. Aí a troça em beirada de
fogueiras, o vuvo de falinhas e falas, no encorpar da noite. Artes
que havia uma alegria. Alegria, é o justo. Com os casos, que todos
iam contando, de combates e tiroteios, perigos tantos vencidos,
escapulas milagrosas, altas coragens... Aquilo, era uma gente. Ali eu
estava no entremeio deles, esse negócio. Não carecia de calcular o
avante de minha vida, a qual era aquela. Saísse dali, tudo virava
obrigação minha trançada estreita, de cór para a morte. Homem foi
feito para o sozinho? Foi. Mas eu não sabia. Saísse de lá, eu não
tinha contrafim. Com tantos, com eles, gente vivendo sorte, se
cumpria o grôsso de uma regra, por termo havia de vir um ganho; como
não havia de ter desfêcho geral? Por que era que todos ficavam ali,
por paz e por guerra, e não se desmanchava o bando, não queriam ir
embora? Reflita o senhor nisso, que foi o que depois entendi vasto.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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