Eu
estava jogando xadrez com o Jorge Luis Borges, no escuro, para não
lhe dar nenhuma vantagem, quando ouvimos um tropel vindo da rua.
— Escuta
— disse Borges. — Zebras!
— Por
que zebras? — perguntei. — Devem ser cavalos.
Ele
suspirou, como quem desiste. Em seguida me contou que há muitos anos
pensava em escrever uma história assim:
— De
repente, na Europa, começam a desaparecer pessoas. Pessoas humildes,
gente do campo, soldados rasos. E desaparecem depois de acidentes
estranhos. São atropeladas por cavalos, ou por bispos, ou por outras
pessoas humildes, ou o mais estranho de tudo, por torres. Estão
caminhando na rua, trabalhando, nas suas casas, e de repente vem um
cavalo e as atropela, ou vem um bispo e as derruba, ou vem uma torre,
não se sabe de onde, e as soterra. E as pessoas desaparecem do
mundo.
Neste
instante ouvimos o estouro de um motor vindo da rua.
— Escuta
— disse eu, tentando me recuperar. — O Hispano Suiza de uma diva
estrábica!
— Deve
ser uma Kombi — disse Borges. E continuou. — Outras coisas
estranhas acontecem. Uma torre do castelo real da Holanda desloca-se
loucamente pelo mapa e choca-se contra uma parede do castelo do rei
Juan Carlos, da Espanha. E os bispos! Causa grande comoção o
comportamento de alguns bispos europeus, que passam a só andar em
diagonal, ameaçadoramente. Ninguém consegue explicar por quê. Nem
eles mesmos.
— Cavalos,
bispos em diagonal, torres, reis... — disse eu. — Isso está me
lembrando alguma coisa.
— Exatamente
— disse Borges. — Um jogo de xadrez. Um imenso jogo de xadrez. O
tabuleiro é um continente. As peças, vivas, são manipuladas por
forças desconhecidas. Quem está jogando? O Bem contra o Mal?
Cientistas loucos, senhores de forças irresistíveis que alteram a
matéria e o comportamento humano de acordo com a sua loucura? A me
galomania natural de todo jogador de xadrez elevada a uma dimensão
inimaginável? No fim tudo termina com um grande escândalo.
— Como?
— perguntei, descobrindo, pelo tato, que Borges liquidara todos os
meus peões.
— Descobrem
um bispo na casa da rainha. A Elizabeth da Inglaterra. Um bispo
anglicano, mas mesmo assim... Os tablóides fazem um carnaval. Há
brigas no Parlamento. O grande jogo de xadrez termina, tão
misteriosamente quanto começou. O apocalipse é derrotado pelo senso
de propriedade inglês. Sua vez.
Mais
tarde Jorge Luis Borges me contou que no Antigo Egito já se falava
num Antigo Egito. Por baixo das areias do Antigo Egito existia outro
Egito, e mais outro, no qual se falava em mais três. Mas no nosso
Antigo Egito, no Antigo Egito mais recente, disse Borges,
acreditava-se numa vida depois desta e Borges indicou o tabuleiro com
as duas mãos. Acreditava-se em ainda outro Egito acima do Antigo
Egito. Um Futuro Egito. Para onde iam os mortos, de navio. Os
egípcios acreditavam também que, quando o nome ou a imagem de um
morto eram apagados na Terra, o espírito do morto se apagava no
Além. Os profanadores e os iconoclastas tinham a oportunidade de
matar o morto pela segunda vez. O rei Akhnaton, por exemplo, apagara
todas as referências a seu pai, o rei Amenhotep, das paredes e dos
escritos do reino, apagando-o na Eternidade. Perguntei então a
Borges o que pensava da teoria segundo a qual Akhnaton, o da Tebas
das Mil Portas, no Egito, fora o modelo histórico de Édipo, o da
Tebas das Sete Portas da Grécia, que Freud... Mas Borges ergueu as
mãos e me pediu para não introduzir Freud, o dos 500 alçapões,
nesta história, que já se complicava demais. E disse que só
contava a história para mostrar o poder dos escritores sobre a
posteridade e como até os mortos estavam à mercê dos revisores.
Outra
vez eu estava jogando xadrez com Jorge Luis Borges numa sala de
espelhos, com peças invisíveis num tabuleiro imaginário, quando um
corvo entrou pela janela, pousou numa estante e disse:
— Nunca
mais.
— Por
favor, chega de citações literárias — disse Borges,
interrompendo sua concentração.
Tínhamos
eliminado tudo do xadrez, menos a concentração. Protestei que não
estava fazendo citações literárias.
— Há
horas que estou em silêncio.
— Citando
entrelinhas — acusou Borges.
— E
mesmo — insisti —, não fui eu que falei. Foi um corvo.
— Um
corvo? — disse Borges, empinando a cabeça.
— O
corvo de Poe.
— Obviamente,
não — disse Borges. — Ele falou em português. É o corvo do
tradutor.
Imediatamente
Borges começou a contar que traduzira para o espanhol a poesia de
Robal de Almendres, o poeta anão da Catalunha. Robal escrevia na
areia com uma vara e seus seguidores literários literalmente o
seguiam, ao mesmo tempo copiando e apagando os seus versos do chão
com os pés. Desta maneira, Robal jamais revisava os seus poemas,
pois não podia voltar atrás para ver o que tinha escrito.
— Por
que não lia o que seus seguidores tinham copiado?
— Porque
não confiava neles. Se houvesse um entre eles com pretensão à
originalidade, fatalmente teria alterado a poesia do mestre e não
mereceria confiança. Os outros eram meros copiadores, e quem pode
confiar em copiadores? Assim Robal se considerava o poeta mais
inédito do mundo. Todas as edições das suas obras eram
desautorizadas por ele. Quanto mais o editavam, mais inédito ele
ficava. Robal quase ganhou um Prêmio Nobel, mas desestimulou a
academia em Estocolmo com a ameaça de ir receber o prêmio em
Nairóbi. E eu traduzi a sua obra.
— Como
você se manteve fiel ao espírito de Robal de Almendres, na
tradução?
— Mudando
tudo. Fazendo prosa em vez de poesia. Não traduzindo fielmente nem
uma palavra.
— E
onde está essa obra?
— É
toda a minha obra — confidenciou Borges.
O
corvo voou.
Mais
tarde, chegamos à questão da importância da experiência para o
escritor. Eu sustentava que a experiência é importante para um
escritor. Borges mantinha que a experiência só atrapalhava.
— Toda
a experiência de vida de que eu necessito está nesta biblioteca —
disse Borges, indicando a sala de espelhos com as mãos.
— Mas
nós não estamos numa biblioteca, mestre — observei.
— Eu
estou sempre numa biblioteca — disse Borges. Continuou: — E,
mesmo assim, sei como é enfrentar um tigre.
— Mas
você alguma vez enfrentou um tigre?
— Nunca.
Nunca sequer vi um tigre na minha vida. Mas sei como os seus olhos
faíscam. Sei como é o seu cheiro, e o silêncio macio dos seus pés
no chão do jângal. Tenho 117 maneiras de descrever o seu pêlo e
posso comparar seu focinho com outras 117 coisas, desde a frente de
um Packard até um dos disfarces do Diabo. Sei como é o seu bafo,
quente como o de uma fornalha, no meu rosto, quando ele procura minha
jugular com os dentes.
— Você
se baseia no relato de alguém que enfrentou um tigre e escreveu a
respeito?
— Não.
Ninguém que enfrentou um tigre jamais deu um bom escritor.
— E
o contrário? Um escritor que tenha enfrentado um tigre?
— Houve
um — contou Borges. — Aliás, um bom escritor. Um dia ele foi
atacado por um tigre dentro da sua biblioteca, que ficava no centro
de Amsterdã. Nunca foi possível descobrir como o tigre chegou lá.
— O
tigre o matou?
— Não.
Ele está vivo até hoje.
— Mas
então ele, melhor que ninguém, pode descrever o que é enfrentar um
tigre. Porque tem a experiência.
— Não.
Você não vê? Para escrever de maneira convincente sobre o tigre
ele teria que voltar à sua biblioteca. Consultar os seus volumes. Os
zoólogos e os caçadores. Os simbolistas. As enciclopédias. Tudo
que já foi escrito sobre o tigre. As comparações do seu focinho
com a frente de um Packard ou com um dos disfarces do Diabo. E isso
ele não pode fazer.
— Por
que não?
— Porque
tem um tigre na sua biblioteca!
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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