quinta-feira, 12 de março de 2020

Até os delírios precisam ser pelo menos um pouco organizados

Odeio dizer isto, mas a verdade é que estou um pouco nervosa. Minha família sempre desprezou qualquer forma de frescura, fui criada assim. Minha família não vale nada, mas é ótima, principalmente os mais antigos. Temos ancestrais fantásticos. Tudo bandido, e eles se escondem por trás daquelas baixelas e daqueles pratos de antes da Primeira Guerra e daquelas maneiras de lordes das Índias Ocidentais. Meu avô era, como eu já disse, era prussiano, prussiano de Brandemburgo, abominava todo mundo, com exceção de Frederico II. A ideia dele de um grande programa na Europa era passar quatro dias em Potsdam, babando dentro da Orangerie e sonhando em empalar poloneses. Grande família. A mulher dele era católica da Vestfália, só tomava banho sábado e nunca ria, a não ser gargalhadas histéricas que duravam horas, geralmente aos domingos, depois da missa e antes dos repolhos hediondos. Tremenda família. Só conheço meus bisas pelos retratos ovais, espalhados por aí. Os dos museuzinhos, não levo em conta, só lembro que meu bisa João me assombrava com uns olhos horripilantemente biliosos, num retrato cercado de louros, na sala grande da casa da fazenda de Lençóis. João teve imensos escravos e um antigo jornalista baiano, desses que a gente finge que lembra e é nome de rua em Brotas, publicou seis números da destemida gazeta independente e republicana “14 de agosto”, esse jornalista, como é mesmo o nome dele, escreveu — hoje ninguém acredita, a humanidade é burríssima mesmo — que meu bisa tinha descoberto a cura da gagueira. O canalha falsificou documentos e a própria alma — você acredita que o pulha era mulato? pardo como se dizia mais nessa época — e inventou uma porção de coisas sobre não sei quantos escravos, pelo menos duas dúzias, em cujas bocas meu bisa mandou enfiar ovos quentes, ele adorava enfiar um ovo quente na boca de alguém sob qualquer pretexto, ou mesmo sem pretexto, dizem até que meteu um na boca de minha bisa Sinhazinha, mulher dele. Os ovos realmente ele mandava enfiar, mas evidente que seu efeito foi inventado pelo jornalista. Seis desses escravos, disse aquele crápula, eram gagos e ficaram bons da gagueira, depois dos ovos quentes. Claro, ele não defendia que se pusessem ovos quentes na boca de ninguém, mas que se aproveitasse a lição, a ciência médica podia encontrar um meio para curar esse aflitivo mal da fala através de uma terapia inspirada nisso, imagino que talvez um ovo não muito quente, em várias aplicações. O homem é muito ingrato para com seus benfeitores, como dizia minha tia-avó Inês, que tinha horror de preto e chamava de cu-de-luto qualquer branca que dormisse com negro ou raceado.
Vejo tudo como se fosse hoje. A velha casa-grande do Outeirão, que já peguei com as paredes cobertas de limo de verde a retinto, insetos por tudo quanto era canto, jias que no inverno miavam como gatos, plantas estalando, as telhas se entrelaçando com cipós e uma ou outra cobra cor de esmeralda, o resto da chuva ainda pingando das árvores nas plantas de folhas grandes em baixo, uns fedores e cheiros mornos saindo das rachas nos pisos de lajota, passarinhos cantando e piando, uns azulejos desmaiados nas paredes do varandão, umas quatro galinhas brabas ciscando debaixo das touças de bananeira, pedras soterradas pela lama, calangos trepando pelos troncos das mangueiras, duas ou três mutucas zumbindo e, apesar de tudo, um silêncio que chegava a doer. Isso. Foi nesse dia, nessa grande casa velha embolorada, que tinha uma estante de sucupira crua que as goteiras haviam empenado nas juntas. Já conhecia muito aquela estante, mas, mesmo assim, ou talvez por causa disso mesmo, fui mexer nos livros enrugados pela umidade, com as páginas tresandando inesquecivelmente e, a cada uma que eu folheava, essa exalação me trazia um arrepio no meio das costas e me deixava enlouquecida. Havia todos os tipos de livro. Lembro bem do O Guarany, com ípsilon, ilustrado pela figura de Pery, também com ípsilon, que eu achava que mostrava um volume fascinante do lado esquerdo da tanga de espanador, de Salambô, estampando uma mulata quase nua na capa, D. Quixote de ceroulas em meio a alucinações, uma coleção encadernada de Anatole France se desmanchando, tudo, tudo. Como seria a voz de meu bisa João Ferdinando Bibiano Rafael, mandando enfiar ovos quentes na boca dos outros? Como seria?
Sou fixada na fase oral, fase oral canibalista certamente, adoro qualquer forma de ingestão. Nessa época, eu já estava bem fixadinha, hoje isso é perfeitamente claro. Não sou chegada à psicanálise. Lá em casa, desde muito antes de Freud, com certeza, sempre se achou obsceno ficar contando intimidades e fraquezas a um estranho, mas de vez em quando uso uma frase que aproveita o jargão dos psicanalistas, acho que é meio inevitável na minha geração, não sei. Então, na falta de melhor observação, eu tenho certeza de que me encaixo nessa situação de fixada na fase oral, passei anos sem entender nada, e essa noção quebra meu galho. Porque sempre achei gostoso ingerir, a não ser por via venosa, e venho continuando vida afora, apesar de hoje em dia estar um pouco blasée. Então eu ficava cheirando aqueles livros e tendo arrepios. Ainda cheiro, mas só livros velhos e, como disse, estou um pouco blasée. Deve ser coisa da idade, certamente é a idade, embora, é claro, eu não me considere velha. Mas já vivi quase sete décadas, alguma coisa sucede nesse tempo. Confusão, estou fabricando uma tremenda mixórdia. Será que estou fazendo psicanálise? Pavor, ouvido de aluguel, pavor. Bem, de certa forma, você e esse gravador são ouvidos de aluguel. Sei lá. É, deve ser coisa da idade, eu abomino a expressão “terceira idade”, hipocrisia de americano, entre as muitas que já importamos, americano é o rei do eufemismo hipócrita. Não suporto velho, velho mesmo, metido a alegre, velhice é uma desgraça, não traz nada que preste. Cortar isso tudo acima, eu mesma acho que não entendi nada do que acabei de falar. A gente fica a mesma e não fica a mesma. Ih, chega, preciso botar alguma ordem nisto e até os delírios precisam ser pelo menos um pouco organizados sob algum critério, é preciso dar método à loucura, mais ou menos como Polônio falou da piração de Hamlet. Thy son is mad, but there is method in his madness, não foi isso que ele disse, mais ou menos? Eu gosto de Shakespeare, leio desde menina, mesmo no tempo em que não compreendia patavina. Aliás, será que compreendo hoje? Ninguém compreende nada, seja da vida, seja de Shakespeare, que morreu mais de dez anos mais moço do que eu, sem saber que era Shakespeare, Voltaire desancou Shakespeare, todo mundo desancou Shakespeare, a vida... Ih, chega!
A vinda dele, o nosso encontro, isso era o que eu ia contar, para finalmente começar o depoimento. Sem frescura, basta de frescura. A vinda dele eu posso dizer sem nenhum constrangimento, foi meio violenta, ou bastante violenta, se você quiser. Ele brincava comigo e meu irmão Otávio, a gente gostava dele, minha avó de vez em quando deixava que ele almoçasse com a gente, mas ele era somente um dos negrinhos da fazenda, naquele bando de escravos que meu avô tinha. Não eram escravos oficialmente, mas de fato eram escravos e a maior parte vivia satisfeita, fazendo filhos e enrolando meu avô. Figura interessante, meu avô peidão, pena que eu não tenha tido a oportunidade, física e psicológica, de conviver mais com ele, não havia como, embora ele gostasse de mim e eu dele. Acho que ele sabia que era enrolado o tempo todo. Acho que não, ele sabia, mas claro que não ligava, ele era uma postura pragmático-egocêntrica, não pode mais existir gente como ele, naturalmente.
João Ubaldo Ribeiro, in A casa dos budas ditosos – Luxúria

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