Odeio
dizer isto, mas a verdade é que estou um pouco nervosa. Minha
família sempre desprezou qualquer forma de frescura, fui criada
assim. Minha família não vale nada, mas é ótima, principalmente
os mais antigos. Temos ancestrais fantásticos. Tudo bandido, e eles
se escondem por trás daquelas baixelas e daqueles pratos de antes da
Primeira Guerra e daquelas maneiras de lordes das Índias Ocidentais.
Meu avô era, como eu já disse, era prussiano, prussiano de
Brandemburgo, abominava todo mundo, com exceção de Frederico II. A
ideia dele de um grande programa na Europa era passar quatro dias em
Potsdam, babando dentro da Orangerie e sonhando em empalar poloneses.
Grande família. A mulher dele era católica da Vestfália, só
tomava banho sábado e nunca ria, a não ser gargalhadas histéricas
que duravam horas, geralmente aos domingos, depois da missa e antes
dos repolhos hediondos. Tremenda família. Só conheço meus bisas
pelos retratos ovais, espalhados por aí. Os dos museuzinhos, não
levo em conta, só lembro que meu bisa João me assombrava com uns
olhos horripilantemente biliosos, num retrato cercado de louros, na
sala grande da casa da fazenda de Lençóis. João teve imensos
escravos e um antigo jornalista baiano, desses que a gente finge que
lembra e é nome de rua em Brotas, publicou seis números da
destemida gazeta independente e republicana “14 de agosto”, esse
jornalista, como é mesmo o nome dele, escreveu — hoje ninguém
acredita, a humanidade é burríssima mesmo — que meu bisa tinha
descoberto a cura da gagueira. O canalha falsificou documentos e a
própria alma — você acredita que o pulha era mulato? pardo como
se dizia mais nessa época — e inventou uma porção de coisas
sobre não sei quantos escravos, pelo menos duas dúzias, em cujas
bocas meu bisa mandou enfiar ovos quentes, ele adorava enfiar um ovo
quente na boca de alguém sob qualquer pretexto, ou mesmo sem
pretexto, dizem até que meteu um na boca de minha bisa Sinhazinha,
mulher dele. Os ovos realmente ele mandava enfiar, mas evidente que
seu efeito foi inventado pelo jornalista. Seis desses escravos, disse
aquele crápula, eram gagos e ficaram bons da gagueira, depois dos
ovos quentes. Claro, ele não defendia que se pusessem ovos quentes
na boca de ninguém, mas que se aproveitasse a lição, a ciência
médica podia encontrar um meio para curar esse aflitivo mal da fala
através de uma terapia inspirada nisso, imagino que talvez um ovo
não muito quente, em várias aplicações. O homem é muito ingrato
para com seus benfeitores, como dizia minha tia-avó Inês, que tinha
horror de preto e chamava de cu-de-luto qualquer branca que dormisse
com negro ou raceado.
Vejo
tudo como se fosse hoje. A velha casa-grande do Outeirão, que já
peguei com as paredes cobertas de limo de verde a retinto, insetos
por tudo quanto era canto, jias que no inverno miavam como gatos,
plantas estalando, as telhas se entrelaçando com cipós e uma ou
outra cobra cor de esmeralda, o resto da chuva ainda pingando das
árvores nas plantas de folhas grandes em baixo, uns fedores e
cheiros mornos saindo das rachas nos pisos de lajota, passarinhos
cantando e piando, uns azulejos desmaiados nas paredes do varandão,
umas quatro galinhas brabas ciscando debaixo das touças de
bananeira, pedras soterradas pela lama, calangos trepando pelos
troncos das mangueiras, duas ou três mutucas zumbindo e, apesar de
tudo, um silêncio que chegava a doer. Isso. Foi nesse dia, nessa
grande casa velha embolorada, que tinha uma estante de sucupira crua
que as goteiras haviam empenado nas juntas. Já conhecia muito aquela
estante, mas, mesmo assim, ou talvez por causa disso mesmo, fui mexer
nos livros enrugados pela umidade, com as páginas tresandando
inesquecivelmente e, a cada uma que eu folheava, essa exalação me
trazia um arrepio no meio das costas e me deixava enlouquecida. Havia
todos os tipos de livro. Lembro bem do O Guarany, com ípsilon,
ilustrado pela figura de Pery, também com ípsilon, que eu achava
que mostrava um volume fascinante do lado esquerdo da tanga de
espanador, de Salambô, estampando uma mulata quase nua na capa, D.
Quixote de ceroulas em meio a alucinações, uma coleção
encadernada de Anatole France se desmanchando, tudo, tudo. Como seria
a voz de meu bisa João Ferdinando Bibiano Rafael, mandando enfiar
ovos quentes na boca dos outros? Como seria?
Sou
fixada na fase oral, fase oral canibalista certamente, adoro qualquer
forma de ingestão. Nessa época, eu já estava bem fixadinha, hoje
isso é perfeitamente claro. Não sou chegada à psicanálise. Lá em
casa, desde muito antes de Freud, com certeza, sempre se achou
obsceno ficar contando intimidades e fraquezas a um estranho, mas de
vez em quando uso uma frase que aproveita o jargão dos
psicanalistas, acho que é meio inevitável na minha geração, não
sei. Então, na falta de melhor observação, eu tenho certeza de que
me encaixo nessa situação de fixada na fase oral, passei anos sem
entender nada, e essa noção quebra meu galho. Porque sempre achei
gostoso ingerir, a não ser por via venosa, e venho continuando vida
afora, apesar de hoje em dia estar um pouco blasée. Então eu
ficava cheirando aqueles livros e tendo arrepios. Ainda cheiro, mas
só livros velhos e, como disse, estou um pouco blasée. Deve
ser coisa da idade, certamente é a idade, embora, é claro, eu não
me considere velha. Mas já vivi quase sete décadas, alguma coisa
sucede nesse tempo. Confusão, estou fabricando uma tremenda
mixórdia. Será que estou fazendo psicanálise? Pavor, ouvido de
aluguel, pavor. Bem, de certa forma, você e esse gravador são
ouvidos de aluguel. Sei lá. É, deve ser coisa da idade, eu abomino
a expressão “terceira idade”, hipocrisia de americano, entre as
muitas que já importamos, americano é o rei do eufemismo hipócrita.
Não suporto velho, velho mesmo, metido a alegre, velhice é uma
desgraça, não traz nada que preste. Cortar isso tudo acima, eu
mesma acho que não entendi nada do que acabei de falar. A gente fica
a mesma e não fica a mesma. Ih, chega, preciso botar alguma ordem
nisto e até os delírios precisam ser pelo menos um pouco
organizados sob algum critério, é preciso dar método à loucura,
mais ou menos como Polônio falou da piração de Hamlet. Thy son
is mad, but there is method in his madness, não foi isso que ele
disse, mais ou menos? Eu gosto de Shakespeare, leio desde menina,
mesmo no tempo em que não compreendia patavina. Aliás, será que
compreendo hoje? Ninguém compreende nada, seja da vida, seja de
Shakespeare, que morreu mais de dez anos mais moço do que eu, sem
saber que era Shakespeare, Voltaire desancou Shakespeare, todo mundo
desancou Shakespeare, a vida... Ih, chega!
A
vinda dele, o nosso encontro, isso era o que eu ia contar, para
finalmente começar o depoimento. Sem frescura, basta de frescura. A
vinda dele eu posso dizer sem nenhum constrangimento, foi meio
violenta, ou bastante violenta, se você quiser. Ele brincava comigo
e meu irmão Otávio, a gente gostava dele, minha avó de vez em
quando deixava que ele almoçasse com a gente, mas ele era somente um
dos negrinhos da fazenda, naquele bando de escravos que meu avô
tinha. Não eram escravos oficialmente, mas de fato eram escravos e a
maior parte vivia satisfeita, fazendo filhos e enrolando meu avô.
Figura interessante, meu avô peidão, pena que eu não tenha tido a
oportunidade, física e psicológica, de conviver mais com ele, não
havia como, embora ele gostasse de mim e eu dele. Acho que ele sabia
que era enrolado o tempo todo. Acho que não, ele sabia, mas claro
que não ligava, ele era uma postura pragmático-egocêntrica, não
pode mais existir gente como ele, naturalmente.
João
Ubaldo Ribeiro, in A casa dos budas ditosos – Luxúria
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